Skip to main content
Cultura

Ciência quase lírica

By 30/01/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Crédito: Liam Daniel/ Focus Features

“Emocionante” foi a palavra que a crítica especializada mais usou para descrever A Teoria de Tudo (dir. James Marsh, 2014), recém-lançado no Brasil. O filme, baseado no livro homônimo de Jane Hawking, retrata a trajetória de Jane e de seu especialíssimo marido, o físico Stephen Hawking, tão conhecido por ser referência mundial em buracos negros como por ser portador de esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença debilitante, mas que não conseguiu impedir o inglês de fazer ciência de altíssimo nível. Quando foi diagnosticado, aos 21 anos de idade, o cientista teve um prognóstico de mais dois anos de vida. No entanto, já chegou aos 73 e continua produtivo.

Na última quinta-feira, 29/01, o repórter e colunista de ciência do jornal Folha de São Paulo, Reinaldo José Lopes, escreveu a respeito do filme na primeira página do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Ele abre o texto dizendo que “é difícil não se emocionar com “A Teoria de Tudo”, em especial se você tem alguma familiaridade com a história e os maneirismos do físico Stephen Hawking, provavelmente o único cientista vivo com status de celebridade global”.

A emoção a que Lopes e os espectadores se referem se dá em duas vias. A primeira, mais forte, protagonista no livro e no filme, é aquela agarrada à narrativa da história de amor do casal, o relacionamento, o casamento, a chegada e a criação dos três filhos. É fácil calcular as dificuldades que Jane enfrentou ao assumir o romance com um estudante universitário potencialmente gênio e com um prognóstico incapacitante pela frente. Alguns ingredientes se somam a essa receita: o cenário é Cambridge, uma das cidades mais simpáticas e bonitas da Inglaterra; a família Hawking é mostrada como durona e competitiva, incapaz de ajudar e sempre cobrando que Jane tenha um desempenho irreparável em suas múltiplas tarefas; e, por fim, Stephen. Sarcástico, sacana, com um senso de humor muito peculiar, rindo de si e do mundo.

Em entrevista exclusiva à Revista Giz, Lopes ressaltou que “a atuação de Eddie Redmayne, que dá vida a Stephen, é admirável, porque ele consegue mostrar, detalhe por detalhe, a deterioração do cosmólogo”. De fato, as cenas que revelam a força da ELA, os estragos que provoca no corpo de Stephen, são arrebatadoras. Ao mesmo tempo, o ator traduz em suas caras e bocas a personalidade nada fácil do cientista. Também Felicity Jones, a atriz que interpreta Jane Hawking, esbanja veracidade e convence no papel de esposa de um prodígio. Para Lopes, na Folha de São Paulo, “parte da pungência do filme vem da deterioração que ambos sofrem ao longo de décadas do casamento: Hawking por conta da doença neurodegenerativa que lhe rouba os movimentos e a fala, Jane porque o peso de cuidar de três filhos e de um marido brilhante e cabeça-dura acaba levando à separação dos dois”. Ele completa, na nossa entrevista: “embora dependesse fisicamente da esposa para tudo e não aceitasse a presença de empregados ou enfermeiros, Stephen era meio cínico e arrogante com Jane e é ele quem decide pelo divórcio”.

A segunda via da emoção, coadjuvante porém presente, destaca-se mais para quem aprecia a ciência – principalmente o conhecimento do infinitamente grande e do infinitivamente pequeno. Emociona-se com este aspecto quem gosta de ver conceitos científicos básicos e até mais sofisticados traduzidos para uma linguagem compreensível. Ao lado do texto de Lopes, saiu outro, assinado pelo físico brasileiro Marcelo Gleiser. Ali, o professor de astronomia e filosofia natural no Dartmouth College, nos Estados Unidos, comemora a alegria de ver a ciência nas telonas e lembra que as contribuições mais significativas de Stephen Hawking aparecem no filme: “Seus três resultados científicos mais importantes estão no longa: que o Big Bang é uma singularidade do espaço e do tempo, sua tese de doutorado; que, anos mais tarde, esse resultado foi considerado inválido quando combinado com a física quântica -que descreve partículas subatômicas, necessária na descrição da infância cósmica. O terceiro resultado, o mais significativo, é que algo escapa dos buracos negros. Conhecida como radiação de Hawking, acaba por levar à evaporação e ao eventual desaparecimento desses objetos bizarros, personagens centrais de “Interestelar” [outro filme que concorre a cinco Oscar, dir: Christopher Nolan, 2014].

Lopes acredita que “A teoria de tudo” conseguiu dar conta desses e de outros conceitos científicos “com exemplos, como o do Big Bang, o evento que teria dado origem ao nosso universo, explicado como uma bolha de sabão explodindo, ou outras coisas que o público mais comum alcança”, defende. Mais ainda, segundo Lopes, o filme instiga leigos e especialistas a buscar mais sobre a vida e sobre a produção de Hawking. “A história é narrada de tal maneira que desperta o interesse do público sim, não só pela figura do cientista, mas pela obra dele. Me parece que a conexão entre vida pessoal – com tudo que o filme conta – e produção científica é o que chama a atenção e mais convida a conhecer”, afirmou na entrevista.

No entanto, a única falha do filme, segundo o jornalista da Folha de São Paulo, é também uma questão da ciência. “A teoria de tudo” mostra que o processo de criação científica é solitário, individual e com rasgos de genialidade. Na verdade, Stephen Hawking tem mesmo uma inteligência destacada, mas sempre trabalhou em equipe, sempre contou com a colaboração de cientistas e estudantes. Colaboração física e nos cuidados diários, inclusive. É sempre salutar traduzir o modus operandi de um cientista, para humanizar a carreira e aproximá-lo do público comum. “A personalidade controversa de Stephen está lá”, aponta, “com todas as qualidades e idiossincrasias que lhe são tão características. Mostrá-lo assim evita um possível  endeusamento. O ideal seria que o fazer científico também buscasse essa dimensão humana e colaborativa, para se distanciar da mítica do gênio.”

Há ainda outro ponto que incomoda Lopes: “É uma excessiva discussão sobre o papel de Deus nessa história toda, na ciência, na condição de Hawking”, lembra. Sabidamente, Stephen é ateu e chega a zombar de Deus e das religiões em muitas situações. Já Jane é religiosa e, no livro, atribui a sua fé à força para aguentar as agruras ao lado do marido. Talvez por isso o filme tenha escorregado por essa vereda. O risco, segundo Lopes, é que trabalhar com a interferência divina pode empobrecer um pouco o debate que Stephen Hawking nos propõe desde sempre: qual é mesmo o significado da existência humana, seja no ambiente doméstico e dos relacionamentos amorosos, seja nesse grande e ainda enigmático universo que nos cerca.

No texto da última 5a feira, Marcelo Gleiser encerra dizendo que “A teoria de tudo” “celebra o espírito de um homem que lutou por toda a vida para iluminar o mistério do tempo, tanto o cósmico quanto o pessoal”. E Lopes completa propondo que a busca pela composição do universo, luta na qual Stephen Hawking se embrenhou sem ressalvas, é mostrada de forma incomumente bela, como uma ciência quase lírica.

Comentários