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Cultura

Força jovem

By 12/09/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Do portão de entrada do Centro de Exposições Anhembi, na zona norte da capital paulista, até a última pessoa da fila, os organizadores da Bienal Internacional do Livro de São Paulo calcularam uma distância de três quilômetros. Uma quantidade espetacular de pessoas que serpenteava pela calçada, esperando seu momento de entrar. Debaixo do sol implacável da manhã de 22 de agosto, sábado, dia da abertura da feira, meninos, meninas, jovens e uns tantos adultos queriam ser os primeiros a entrar nos pavilhões, nos estandes, circular entre as prateleiras de livros. Provavelmente queriam também comprar alguns volumes, compartilhar histórias e experiências com outros leitores. E, acima de tudo, desejavam ansiosamente encontrar os escritores, os autores das obras que vêm arrebatando cabeças e corações juvenis.

Os adolescentes foram, certamente, os protagonistas e a maior força motriz da Bienal que acabou no último dia 31 de agosto. A Câmara Brasileira do Livro (CBL), que organiza o evento, anunciou que foram 720 mil visitantes que passaram pela feira, nos nove dias do evento. Um recorde. Luiz Schwarz, da Companhia das Letras, uma das editoras mais influentes do país, comemorou o sucesso estrondoso e escreveu em seu blog que “há muitas bienais não sentia emoção semelhante a essa que senti ao visitar a feira que se encerrou no domingo passado. (…) Junto da emoção de ver grupos de jovens gritando por seus autores — como nos tempos da Beatlemania —, lutando por senhas, revelando serem os livros objetos de sonho, surgem também algumas indagações. A principal delas é entender que outros fatores, além dos econômicos e do resultado do progresso social, nos fizeram chegar à atual realidade do mercado editorial brasileiro”.

No entanto, o que deixa os especialistas em livros, leitura e educação felizes e animados mesmo não são apenas os corredores abarrotados de jovens leitores, mas o entendimento de que essa talvez tenha sido a explosão e consolidação de um fenômeno que vem crescendo nos últimos 30 ou 35 anos e que não vai terminar junto com o baixar das portas da Bienal.

“Pode parecer um contrassenso, porque a leitura é uma atividade solitária e de mergulho em si mesmo, mas adolescentes gostam de fazer tudo em bando e a leitura passa a ser uma dessas coisas que eles fazem juntos. É exatamente como cultura, evento e lazer. E as redes sociais potencializam muito esse comportamento, as trocas, as conversas, os comentários nos blogs. Quanto mais eco, maior a turma dos leitores”

O professor de literatura brasileira da Universidade Estadual Paulista (Unesp), João Luís Ceccantini, pesquisa o assunto há alguns anos e explica, em entrevista à Revista Giz, que esse nicho de literatura juvenil começou a se moldar e ganhar força no final dos anos 1970, aqui no país. Àquela altura, ele lembra, prêmios literários começaram a agitar os autores brasileiros a escrever para adolescentes e jovens adultos. “As gerações anteriores sempre tinham tido acesso a obras que acabaram sendo classificadas como mais juvenis. No entanto, foi na segunda metade do século 20, depois de 1978, que o segmento ficou nítido. Os jovens começaram a pedir, as editoras começaram a ter catálogos específicos e os prêmios começaram a pipocar”.

De lá para cá, a literatura voltada para adolescentes, jovens e jovens-adultos vem amadurecendo e se diversificando. Ainda segundo Ceccantini, o grande ponto de virada – em relação ao respeito pelo segmento – entre todos os públicos envolvidos se deu mesmo em 1998, quando uma escritora britânica bastante audaciosa publicou o primeiro volume de Harry Potter, um bruxinho de 11 anos que, além de trazer os temas da magia e dos grandes dilemas da humanidade para um público mirim, provou para professores e editores que os pequenos podiam ler sim obras com mais de 100 páginas, letras miúdas, sem ilustração e divididos em sete volumes.

“Ah, foi uma revolução, com certeza. Entre 1978 e 1998, naqueles prêmios que estudei, os livros laureados tinham todos menos de 100 páginas. A partir da saga de Harry Potter, todos os ganhadores eram maiores que isso”, conta o professor da Unesp, já explicando que não é o número de páginas em si a grande mudança, mas a capacidade de se manter ligado a uma coleção inteira, longa, densa, que surpreendeu os especialistas. Para ele, Harry Potter também inaugurou um tempo em que um livro não é apenas um livro. “É também um filme, um game, um fenômeno global”, revela Ceccantini, “porque não basta ler. Os jovens leitores gostam de viver intensamente a experiência da imaginação”.

E esse público tem mais uma característica que faz diferença: não gostam de fazer nada sozinhos. “Pode parecer um contrassenso, porque a leitura é uma atividade solitária e de mergulho em si mesmo, mas adolescentes gostam de fazer tudo em bando e a leitura passa a ser uma dessas coisas que eles fazem juntos. É exatamente como cultura, evento e lazer. E as redes sociais potencializam muito esse comportamento, as trocas, as conversas, os comentários nos blogs. Quanto mais eco, maior a turma dos leitores”, afirma o professor de literatura.

Que se trata de um fenômeno multimídia e de massas, já está claro. Mas são duas as questões que surgem a partir dessa constatação. Primeiro: trata-se de uma literatura de boa qualidade? Segundo: esses jovens se tornarão leitores perenes? Ou é tudo fogo de palha? Ceccantini é otimista nas duas respostas. “Essa literatura para jovens é muito variável. Tem de tudo. Desde um texto mais raso, cheio de clichês e enredos óbvios, até obras profundas, que tratam das grandes questões da humanidade, com um texto bem trabalhado”, inicia. Se não dá para generalizar sobre a qualidade, dá, ao menos, para conhecer as obras. “O problema é que a maior parte dos críticos e dos professores nem lê esses livros e já sai taxando como literatura ruim, ou de segunda classe. Tem coisa ruim, mas tem obras que falam muito ao momento que os jovens vivem, às questões que eles enfrentam”, defende.

“Se você olhar os Retratos da Leitura no Brasil, vai notar que as garotas leem muito mais, trocam muito mais com as amigas, encaram obras mais longas e mais seriadas. A distância é bem grande já. No universo masculino adolescente, por alguma razão, a leitura não conta muitos pontos. E isso é uma questão a ser encarada”

E mais: são textos que dialogam com os clássicos, que reveem temas universais que enriquecem o repertório dos leitores-mirins. Ceccantini exemplifica com as distopias. “Boa parte das séries que fazem muito sucesso – como Divergente, Convergente e Insurgente, de Veronica Roth, ou Jogos Vorazes, de Suzanne Collins – são distopias fortemente inspiradas em 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou ainda nos clássicos de ficção científica, num futuro distante. Todas elas referências irrepreensíveis”, afirma o professor da Unesp. Outras coleções retomam as mitologias, como a série de Percy Jackson, com A marca de Atena, ou O filho de Netuno.

Em março deste ano, Ceccantini publicou no jornal Folha de S. Paulo uma resenha sobre o volume de literatura juvenil que mais chamou sua atenção. “Em meio à febre de distopias lançadas no país nos últimos tempos (…), é publicada no Brasil agora aquela que talvez seja a mais consistente dessas obras: “Lua de Larvas”, da inglesa Sally Gardner”, propõe o autor e segue: “A linguagem empregada, próxima à oralidade, é enxuta e expressiva, permeada por alguma ironia do narrador, expressões de duplo sentido e metáforas pouco usuais, num conjunto afinado, que confere à narrativa densidade e constrói com precisão a atmosfera kafkiana e claustrofóbica que envolve a ação e continua viva na memória, mesmo terminada a leitura”.

Sobre a segunda pergunta, se os jovens fanáticos por leitura seguirão lendo pela vida, o professor responde que acredita que sim. Agora, é preciso fazer duas considerações. A primeira é que talvez os livros juvenis não proporcionem uma revolução na literatura, mas “podem provocar sim uma revolução na leitura”, diz Ceccantini, e ler qualquer coisa é melhor do que não ler. O hábito e a fluência na leitura, por si só, já são fatores significativos para medir a importância do fenômeno. A segunda consideração é a desproporção entre meninos e meninas leitores. “Se você olhar os Retratos da Leitura no Brasil, vai notar que as garotas leem muito mais, trocam muito mais com as amigas, encaram obras mais longas e mais seriadas. A distância é bem grande já. No universo masculino adolescente, por alguma razão, a leitura não conta muitos pontos. E isso é uma questão a ser encarada”, alerta.

Para concluir, Ceccantini lembra que “talvez eles não virem os leitores das obras que os adultos acham que eles devem ler, os clássicos e tal. Mas certamente vão continuar leitores sim, o que é um avanço importante”, comemora.

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