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Cultura

A história do casal real

A mulher forte, decidida, politizada e à frente de seu tempo, que entrou para a história como a musa da abolição por assinar a Lei Áurea, responsável por libertar os escravos brasileiros em 1888, jamais existiu. Da mesma forma, o herói militar, parceiro do imperador, que teria trazido os ares refinados da França e tido uma atuação militar gloriosa durante a Guerra do Paraguai, (1864-1870), também não foi esse infalível e exemplar personagem. Muito provavelmente, a vida do casal real, herdeiro do trono do Brasil caso a sucessão tivesse ocorrido, foi bem mais simples e menos decisiva para o país do que se costuma pintar. É o que sugere o livro O castelo de papel, da historiadora Mary del Priore, recém-lançado pela Editora Rocco, que narra a trajetória de Isabel e Gastão, no tempo que precedeu a República.

Este é o terceiro livro da autora sobre a família real brasileira. O primeiro, O príncipe maldito, narra o golpe que Pedro Augusto, neto de Dom Pedro I, tenta deflagrar pouco antes da proclamação da República. O segundo, A condessa de Barral, revela a vida íntima dos nossos imperadores. Se o tema já era caro à historiadora, uma viagem à Bélgica, em 2012, determinou a escolha do foco da nova obra. “Eu quis promover um olhar exterior à casa de Orleans, que era uma família rica, importante, e da qual descende o Conde d’Eu, o príncipe consorte. Quis conhecer como essa família via o Brasil. As elites achavam que era um fazendão, um fim de mundo. A nobreza europeia tinha horror à escravidão”, conta Mary.

A pesquisadora decidiu mergulhar na correspondência entre as famílias de Gastão e Isabel. Foi descobrindo as tratativas para o casamento deles. “Isabel era chamada de negócio. Ela era o negócio número 01 e a irmã, o negócio número 02. A partir daí dá para imaginar o valor que os dois jovens tinham para suas famílias. Eu diria que não era muito grande”, revela. Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orleans era neto do rei Luis Felipe I, o último rei da França, e sua família mostrou-se muito resistente ao negócio, ou melhor, ao casamento, por achar o Brasil  muito longe, porque não concordavam com a escravidão e não viam futuro promissor para a união. No entanto, era um ramo menos abastado da família Orleans, e “príncipes pobres casam com princesas pobres, como Isabel”, lembra a autora. Assim, deu-se a união.

“Não foi o desejo pessoal da princesa Isabel. Quem mais brigou pelo fim da escravidão foi o recém-criado Partido Republicano, foram os maçons, os espíritas, que chegavam ao Brasil, e – acredite – grupos de mulheres jornalistas que escreviam sobre o que acontecia no Rio de Janeiro”

Não é muito comum biografar dois personagens simultaneamente, de maneira entrelaçada. Mas, nesse caso, Mary preferiu usar essa estratégia por entender que separá-los traria certa pobreza para a história dos dois. “Porque, apesar da resistência anterior, apesar da intrusão dos pais de ambos, podemos dizer que foram um casal feliz. Se entendiam bem. Eram, os dois, um tanto gauche”, brinca. Gastão era surdo e pobre. Isabel não era muito bonita e carecia de outros atrativos também. O marido a descreve, inclusive, como uma mulher feia, mas a quem poderia moldar a seu gosto. O duque de Némours, pai do conde, pressionara muito para ele ser um grande homem, referência, herói militar. Mas não foi o que o destino reservou ao filho. Inconformado por mandá-lo ao Brasil, seguiu controlando a vida de Gastão até o fim, inclusive sustentou o filho, a esposa e os filhos deles, depois do advento da República brasileira.

Algo parecido acontecia a Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Bourbon: submissa ao pai quando solteira, submissa ao marido depois do casamento. Seu pai, o Imperador Pedro II, não permitia que Isabel se desenvolvesse muito nos estudos e não a preparou para a sucessão. Após o casamento, a ingerência continuou, e a filha e o genro foram mantidos, por vontade do soberano, apartados da vida política e das decisões de governo. No entanto, esse afastamento forçado não parecia aborrecer demais o casal. “Isabel era muito caseira, preocupada com questões menores, como a alimentação dos filhos, o cuidado com suas orquídeas e o bem estar da família”. E essa é, segundo Mary del Priore, a grande revelação do livro. “Isabel está longe de ser a mulher aguerrida, heroína da abolição. Era antes uma mulher pacata, sem interesse pela vida política do país”. Ao lado do marido, tinham pouco convívio com a corte. Aliás, o próprio Dom Pedro II não conseguiu construir uma corte sólida. Muito taciturno, o monarca não costurava politicamente com muito sucesso as relações no palácio.

Enquanto isso, Isabel e Gastão tentavam produzir um herdeiro para o trono brasileiro. Foram inúmeras as tentativas e as perdas, por mais de dez anos. Os documentos e correspondências analisados pela historiadora mostram inclusive um momento terrível na vida da princesa. Depois de mais de uma década tentando levar a gravidez adiante, Isabel finalmente consegue. Mesmo aflita por não confiar nos médicos brasileiros, é obrigada por seu pai a voltar ao país e ter o filho aqui. O imperador queria um herdeiro brasileiro. No entanto, o parto não evoluiu bem e os médicos optaram por uma solução dramática. “Eles fazem uma cirurgia chamada à época de embriotomia, em que matam a criança e a tiram – aos pedaços – do útero da mãe”, relata a historiadora. Foi um golpe violento para Isabel. A partir daí, as missivas revelam que ela se apega ainda mais à religião, faz uma série de promessas e se afasta ainda mais do imperador. Há relatos que dão conta de visitas em que os dois não se dirigem a palavra. São desse período várias cartas de Gastão ao duque de Némours, contando a fragilidade do casal diante daquela situação toda. “Era inclusive uma maneira de pedir mais ajuda, em todos os sentidos, à família francesa”, conta a autora.

A narrativa dessa vulnerabilidade chama atenção quando lembramos que o Conde d’Eu entrou para a história oficial pela atuação heroica na Guerra do Paraguai. Afinal tratava-se de um militar vitorioso ou de um genro inoperante? Um pouco dos dois, de acordo com a autora de O castelo de papel. “De fato, Gastão se saiu muito bem na Guerra do Paraguai. Mas foi uma surpresa. Ele não tinha uma trajetória militar de sucesso. Servira na África e não se saiu muito bem por lá, o que fez seu pai ficar ainda mais controlador. Além disso, ele queria ir antes, mas entra só no final da guerra para caçar um bandido. Uma missão como essa chega a ser vergonhosa para um militar de carreira, ainda mais quando era o príncipe consorte”.

“Biografias como essa mostram ao leitor que não há heróis”

E a participação no conflito com o país vizinho deixou o conde numa situação delicada, porque a Europa via o Brasil como o invasor e as notícias dos jornais europeus não dispensavam nenhuma simpatia pela Guerra. No entanto, se a figura pública de Gastão não ia muito bem, na intimidade, o casamento ia bem. Isabel mandava cartinhas românticas, “é até engraçado ver a figura de Isabel e imaginar que ela se derramava pelo marido e escrevia coisas como que sentia saudades dele, de beijar seus olhinhos e sua boquinha. Pense nisso no século 19. É incomum”, brinca Mary. Para além desses momentos, de fato o casal foi amigo até o fim da vida.

A história fica mais interessante à medida que a República se aproxima. Gastão, em especial, percebe essa movimentação e vai anunciando as novidades para a família, na Europa. O conde não era muito bem relacionado, nem tivera uma educação primorosa – muito próxima à religião e sob o jugo dominador do pai –, mas era bem informado, então conseguia juntar as peças e perceber o cenário em que viviam. Simultaneamente, Isabel vai se aproximando de atividades filantrópicas. Mas nada parecido com o despertar de uma consciência política. As ações beneméritas foram fruto da inspiração europeia. “Imagine que o velho continente vivia a segunda revolução industrial, o ocaso das últimas monarquias e a ascensão dos movimentos populares mais radicais. Como a elite europeia reage? Abre casas para receber os pobres, hospitais, escolas para os filhos dos menos favorecidos como uma alternativa para reduzir a ebulição social”.

Isabel aprende tudo isso em suas passagens pela Europa e traz esse modelo para o Brasil. Tem um papel de fundar clubes e ampliar a sociabilidade, mas cria principalmente um fundo histórico. A abolição dos escravos entra nesse pacote. Os europeus tinham horror à escravidão, como já foi dito, e a princesa acaba inscrevendo a causa nesse cenário da filantropia. “Chamou minha atenção que nos escritos dela, os negros não têm nome, e isso revela muito. Isabel se refere a eles como os negros, um negrinho, uma preta, as pretas. Não eram pessoas com identidade”, destaca a historiadora. Tanto assim que o livro mostra o caso de um escravo que trabalhou anos servindo à princesa, os aposentos dela, e precisou pedir ao imperador para ser alforriado. Se Isabel se preocupasse mesmo com aquelas pessoas, começaria por seu funcionário.

Essa parte da obra também apresenta o contexto que levou à abolição. “Não foi o desejo pessoal da princesa Isabel. Quem mais brigou pelo fim da escravidão foi o recém-criado Partido Republicano, foram os maçons, os espíritas, que chegavam ao Brasil, e – acredite – grupos de mulheres jornalistas que escreviam sobre o que acontecia no Rio de Janeiro”, conta a autora, redesenhando a realidade da época. Ela continua explicando que era um momento em que o Brasil queria mudanças, parecido com o que aconteceu quando o presidente Lula foi eleito. Tudo inspirava a mudança. São Paulo dá passos importantes, fazendeiros libertam milhares de escravos de uma vez só. Santos era um quilombo a céu aberto, a região de Campinas sediou várias fugas e movimentos de resistência. E, enquanto isso tudo acontecia, o casal foi fazer um tour pelo interior do país para conhecer a realidade um pouco melhor. O resultado do passeio pelo cenário abolicionista? O Conde d’Eu escreveu aos pais dizendo que a abolição tinha de ser assinada logo para os negros voltarem mais rapidamente ao trabalho. E a princesa Isabel detalhou em seu diário a beleza das rosas e das hortênsias da região. Ou seja, o casal vivia muito distante do epicentro das transformações.

Para Mary, O castelo de papel merece ser lido por três razões principais. O primeiro diz respeito a um desejo perene, mundial, de encontrar refúgios no mundo instável em que vivemos. A monarquia seria uma dessas âncoras de estabilidade, por isso sempre atrai atenções. O segundo ponto é que o livro leva a conhecer melhor a história de onde vivemos. O Brasil, embora tenha mania de reis e rainhas – tem rainha do rádio, dos baixinhos, rei da música, do futebol -, conhece pouco seus próprios nobres. E, de acordo com a autora, a globalização, embora nos iguale em muitos aspectos, acende o desejo de buscar a raiz e a identidade do seu clã, de sua origem. E o Brasil, ao que tudo indica, vem passando a limpo sua trajetória.

“Isabel está longe de ser a mulher aguerrida, heroína da abolição. Era antes uma mulher pacata, sem interesse pela vida política do país”

O terceiro ponto descrito pela historiadora é a aproximação do caminhar da história com a atuação dos seres humanos. “Biografias como essa mostram ao leitor que não há heróis. As grandes mudanças se dão com seres humanos, que se destacam mais ou menos, mas que sentem as mesmas coisas que nós, que vivem, que têm problemas, que se dedicam a causas, mas sem perder a condição humana”, afirma. Ao se darem conta de que a História é feita por pessoas, talvez os leitores possam, ao conhecer o passado, se posicionar no presente de forma mais cidadã e assim, quem sabe, refletir sobre o futuro que desejam construir.

A foto utilizada no destaque da imagem é uma adaptação da capa do livro, gentilmente cedida pela Editora Rocco

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