Francisco Bicudo*
É possível – ou desejável – que os textos literários mantenham-se alheios e indiferentes às contradições sociais, apenas tangenciando, assepticamente, temas como violências, marginalidades e exclusões? Foi esse um dos faróis a iluminar a mesa “A imaginação engajada”, que aconteceu no final da manhã de domingo, 8 de julho, último dia da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). O debate, tão elegante quanto divertido, reuniu o escritor carioca Rubens Figueiredo, autor do premiadíssimo “Passageiro do fim do dia”, e o sergipano Francisco Dantas, que escreveu “Os desvalidos” e “Cadernos de ruminações”. O encontro foi mediado por João Cesar de Castro Rocha, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
Em sua apresentação, Castro Rocha foi categórico ao afirmar que tomar partido não é um problema – desde que essa postura contemple a diversidade e não negue partidos diferentes. “Quando essa negação acontece, enveredamos pelos monólogos e pelas acusações”, alertou. Ele elogiou o cenário atual da literatura brasileira, marcada, segundo o professor, pela pluralidade e variedade de escolhas estéticas e pelo reconhecimento do diálogo possível com o outro, divergente. Segundo Costa Rocha, tanto Figueiredo quanto Dantas são legítimos representantes dessa tendência democrática, porque capazes de lançar olhares críticos sobre o real.
“As obras deles constituem-se a partir de exercícios rigorosos de linguagem e de confronto sempre presente de ideias e histórias”, reforçou.
Figueiredo confirmou que essa avaliação faz mesmo sentido ao logo em seguida narrar o processo de escrita de “Passageiro…”, que tem como personagem principal um jovem chamado Pedro, que todas as sextas-feiras, no final da tarde, pega um ônibus lotado e enfrenta o trânsito caótico da cidade do Rio de Janeiro para visitar a namorada que mora num bairro periférico da capital, onde pobreza e precariedade são acentuadas. É uma história que aos poucos, e profundamente, vai revelando a multiplicidade de ambientes, sujeitos, semblantes, afetos, estranhamentos e condições humanas que habitam a cidade.
O autor acabou por reconhecer que muito do que está contado no livro surgiu a partir da própria vivência dele – Figueiredo é professor da rede estadual de ensino, lecionando à noite, para alunos que vivem em condições de pobreza, exploração e opressão. Durante 25 anos, usou dois ônibus para ir e dois ônibus para voltar da escola onde dava aulas (recentemente, trocou o transporte coletivo pela bicicleta). Apesar da longa trajetória no magistério, descobriu a certa altura da vida – e ficou incomodado – que havia uma barreira que o afastava dos estudantes.
“Era um mecanismo social, que nos leva a tratar o pobre como não igual, ao mesmo tempo em que nos empurra a perceber a situação de vida dessas pessoas e os dramas sociais como algo natural. Mais ainda, construímos justificativas para legitimar as desigualdades”.
Para ele, o abismo social é tão grande que dificulta a percepção e a compreensão de cenários banais e elementares – a gente até vê, mas não entende. E acaba por conviver. Ou esquecer.
“Passei a questionar a maneira como a literatura e a ficção muitas vezes lidam com essas questões, construindo anéis mágicos, como se, para escrever, fosse impositivo ficar isento, distante das experiências sociais e dos processos históricos”. Desse questionamento, consolidou-se no autor a convicção de que a literatura é uma possibilidade de conhecer com mais profundidade as experiências humanas mais imediatas. “E o romance é capaz de dar essa contribuição, a partir da apresentação de visões críticas. Foi com essa noção que fiz esse livro”.
Dantas dedicou-se, em sua exposição, a diferenciar devaneio de imaginação – o primeiro seria um fenômeno mais livre, entrando até pela loucura; já o segundo conceito está ligado a uma ação disciplinadora, a um papel ordenador, para dar o resultado em palavras, no caso da literatura. Sobre engajamento, observou que essa palavra sempre foi fatídica para a literatura e lembrou que, na primeira metade do século XX, a imensa maioria dos escritores brasileiros – ele citou Jorge Amado, Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz – registrava em suas obras a presença muito marcante da luta de classes. Tal paradigma teria sido quebrado pela obra de João Guimarães Rosa, com suas narrativas rurais, ambientadas em pequenas comunidades, sem conflitos entre fazendeiros e trabalhadores.
“Foi uma reviravolta. Guimarães veio para nos emancipar. A partir dele, não era mais necessário ter a carteirinha do partido para escrever”. Dantas citou ainda uma fala do escritor estadunidense William Faulkner para reforçar o que pensa sobre engajamento: “há uma passagem em que ele diz que, se alguém estiver queimando ao lado dele, mas ele não se sentir incomodado com o cheiro ruim, que o sujeito que queima vá para o inferno, pois ele, Faulkner, vai continuar a escrever”.
As reflexões de Dantas, no entanto, não devem ser confundidas com insensibilidade ou neutralidade. O que ele parece rejeitar – ao menos foi essa minha percepção – é o engajamento partidário, sectário, excludente; valoriza, no entanto, assim como Figueiredo, o engajamento do escritor que seja construído a partir dos compromissos com seu entorno, com as relações sociais e o próprio sentido de existência digna da humanidade.
Para resumir: engajamento é diferente de sectarismo. “Também fico incomodado com as desigualdades sociais. Não vivo num limbo, mas mergulhado em uma sociedade. Escrevo para questionar ou transformar ou manter esses contextos, às vezes recorrendo inclusive a caricaturas. Mas um romance não pode ser nunca maniqueísta”, alertou, finalizando.
*Fotos: Walter Craveiro/Divulgação FLIP