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Uma perda na inteligência brasileira

Gabriela Bueno

Não apenas um geógrafo de altíssima capacidade intelectual, Aziz Ab’Saber também foi um dos grandes nomes da inteligência nacional.

Presidente de Honra e conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) ganhou destaque no mundo acadêmico em 1958 quando reformulou o conceito de classificação da geomorfologia brasileira, modificando as considerações sobre planalto e planície.

Foi professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência na USP, além de diversas vezes laureado por prêmios como Jabuti em ciências humanas, Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia e Prêmio Unesco para Ciência e Meio Ambiente.

Além da excepcional carreira academia Ab’Saber sempre esteve envolvido em questões políticas relacionadas ao meio ambiente e a preservação de recursos naturais. Ainda que convidado por seu amigo Lula a lhe acompanhar na Caravana da Cidadania, Aziz criticou diversas vezes a de transposição do Rio São Francisco e projeto de flexibilização da gestão de florestas públicas, onde a iniciativa privada poderia ter direito a participar dessa ‘administração’.

Dentre as últimas grandes causas políticas que Aziz Ab’Saber se envolveu está o Código Floresta, texto que o geógrafo discordava devido o projeto não levar em consideração o mapeamento físico e ecológico do Brasil. Para contemplar a preservação das espécies, tanto animais quanto vegetais, o correto, segundo Aziz, seria a criação de um Código da Biodiversidade.

Leia ao lado o texto do Professor Doutor da USP Wagner Costa Ribeiro ►

Aziz Ab’Saber – trajetória acadêmica e luta política

Wagner Costa Ribeiro*
Universidade de São Paulo

Escrever sobre um mestre do porte do professor Aziz Ab’Saber é um desafio estimulante. Trata-se de um dos principais geógrafos do país, responsável por teorias inovadoras e, mais que tudo, um lutador pelas causas ambientais.

Intelectual engajado, ambientalista e polêmico, ainda mais se o assunto envolver a política. Intuitivo, dotado de uma enorme capacidade de síntese, além de excelente orador. Essa série de adjetivos é pequena para a grandeza de um dos maiores pesquisadores brasileiros de todos os tempos. A geografia da vida do professor indica o quanto sua trajetória é articulada à sua história de vida. Do interior do estado de São Paulo, mais especificamente do Vale do Paraíba, partiu para os mais diversos rincões do Brasil, descrevendo-os e estudando-os com o afinco e dedicação de um apaixonado. Um apaixonado pela vida, pela natureza e, também, pela política.

Por isso, descrever as inúmeras frentes de atuação do professor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo também seria uma tarefa muito maior que a empreitada nesse trabalho. Por isso este texto vai comentar alguns dos aspectos citados acima, graças ao generoso convite do professor Manuel Correia de Andrade, outra lenda viva de uma brilhante geração de intelectuais brasileiros.

Certamente será preciso ampliar e muito essas linhas para a construção de uma interpretação da vida e da obra do professor Ab’Saber. A expectativa é contribuir nesse processo destacando passagens da trajetória acadêmica do geógrafo paulista e de seu engajamento como militante ambientalista, mesmo quando ocupou cargos de direção de instituições públicas.

A trajetória

O começo da formação do geógrafo Aziz Ab’Saber ocorreuem São Luizdo Paraitinga, município encravado no Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo. Foi lá que teve os anos iniciais de sua escolaridade até sair para buscar o ingresso na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo – USP. Porém, antes mesmo de migrar para a grandiosa capital paulista, o jovem, vindo de uma modesta família como faz questão de afirmar, teve oportunidade de conhecer o município que vivia e seu entorno. A observação da paisagem, de vital importância metodológica, desenvolvia-se desde logo naquele que viria a se tornar Professor Titular do Departamento de Geografia da USP.

O geógrafo paulista confessou que desejava cursar história ao ingressar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1941. Porém, também confessou que foi uma aula de campo que despertou sua atenção para a geografia.

Esses dois aspectos se combinam na produção intelectual e política de Aziz Ab’Saber. Caminhar em meio ao que depois ele chamaria de Mares de Morros, ao classificar o relevo paulista (Ab’Saber, 1966), desde a infância certamente despertou a atenção para as formas da superfície terrestre do jovem morador da cidade do interior paulista. Um município eminentemente rural, na época em que o professor nasceu, em 24 de outubro de 1924, e que ainda se mantém assim. Atualmente, o carnaval conseguiu algum destaque, tornando-se um dos mais animados do país ao recuperar uma tradição importante: deixar os foliões brincarem nas ruas. Por isso o turismo cresce em Paraitinga, com visitas a seus vales e quedas d’água fora do período de carnaval.

Foi por meio da observação de campo que o professor Aziz formulou suas teorias mais relevantes para a compreensão da dinâmica natural do Brasil. Os domínios morfológicos do Brasil, os estudos sobre as linhas de pedra (stones line), que desenvolveu a partir da influência do geógrafo francês Jean Tricart (Candotti, 1998), e a teoria do refúgio, criada em parceria com o zoólogo Paulo Vanzolini, são realizações memoráveis do professor Aziz. Elas são resultado de uma síntese que começou em viagens pelo país em diferentes momentos. Em sua produção de mais de 320 artigos e alguns livros encontram-se relatos de viagens ao Nordeste, à Amazônia, ao pantanal, ao Rio Grande do Sul, enfim, aos mais distantes pontos do Brasil.

O destaque de sua produção teve início muito cedo, a partir de sua tese de Doutorado, na qual analisou o sítio urbano da cidade de São Paulo, uma obra de referência que já alcança meio século, apresentada em 1956 no Departamento de Geografia, lugar em que exerceu a docência por décadas. Alguns anos depois, em 1965, veio o seu estudo sobre as superfícies aplainadas, nesse caso analisando o planalto brasileiro que serviu para seu concurso de Livre Docente. Apenas três anos depois chegou ao posto de professor Titular por meio de concurso. Em 2000 teve seu reconhecimento ampliado ao receber o título de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Também foi um dos pioneiros do Instituto de Estudos Avançados da USP, que tem como meta reunir pesquisadores de alto nível para pensar a condição do país. Nele atua com grande desenvoltura e propõe temas e artigos estimulantes, como os que versam sobre a Amazônia, o Nordeste e o projeto FLORAM, em conjunto com outros pesquisadores, com será tratado adiante.

A contribuição teórica do professor Aziz é das mais relevantes. Suas pesquisas, em uma época em que não havia tanta ingerência de agências de fomento nas diretrizes universitárias, resultam de sua percepção como pesquisador e do livre arbítrio para conduzir suas tarefas sem inquietações com publicação em revistas indexadas. Os trabalhos de campo subsidiaram a elaboração de teorias que ainda hoje podem ser descritas como fundamentais para explicar a formação do relevo paulista, brasileiro e sul-americano.

A trajetória deste professor da USP pode ser sintetizada nessa passagem de uma de suas obras, ao comentar os anos iniciaisem São Paulo, depois de ingressar como aluno na USP:

Eu era um boêmio tímido e solitário, na grande Cidade. De dia estudava história e geografia. À noite pesquisava a geografia humana do cotidiano. Levei anos para conseguir uma namorada. Fazia falta. Foi muito difícil conseguir algumas aulas nos cursos secundários para sobreviver (Ab’Saber, 2004:14).

A passagem acima revela muito do jovem que chegava à cidade grande: solidão, dificuldades de aceitação social e para conseguir emprego. Nada diferente ao que enfrentam os milhares que ainda hoje projetam suas esperançasem uma São Pauloainda maior e complexa. O relato acima é digno de nota porque, como professor há quase 20 anos, confesso que já vi este olhar aflitivo em rostos de muitos estudantes. Trazer à tona esta condição passada do mestre Aziz é reforçar sua mensagem, qual seja, apesar das dificuldades, não desista!

O professor Aziz inclusive aponta os meios para superar aquela condição, ao escrever que era um “rato” de bibliotecas e, depois, um “rato” de auditórios. Com estes termos deixa claro que ler e ouvir quem tem o que dizer contribui enormemente para a superação de condições sociais adversas. Este é um desafio que permanece em nossos dias: permitir à toda população em idade escolar ler e ouvir pessoas que podem dar a elas a possibilidade de entender sua condição de ser no mundo e de superá-la. Para isto ainda vamos precisar de algumas gerações…

Mas aquela metrópole não era a de hoje. Prosseguindo em seu texto, o professor escreveu:

Uma noite, ao esperar um bonde para ir a uma escola distante, passou por mim, vestido com um longo capotão escuro, a figura marcante de um grande intelectual brasileiro. Lembrei-me logo dos livros A Paulicéia Desvairada e Macunaíma, entre outros. Se alguns flanaram na beira do Sena, Mário de Andrade tinha o direito de flanar no Viaduto do Chá e na Praça da Sé. Na noite fria e garoenta compreendi, também, porque ele identificava sua Cidade como sendo essa ‘Londres das neblinas’(Ab’Saber, 2004:14).

Aquela metrópole está muito distante da atual. A garoa é rara e a neblina restrita a poucos dias do ano. É quase impossível encontrar alguém com a qualidade de Mário deAndrade caminhando despreocupadamente pelas ruas do centro. Hoje em dia, quando muito, é possível encontrar intelectuais em alguns bares e restaurantes da Vila Madalena ou do Butantã. O flanar ficou restrito a passeios diurnos quando de trata do centro de São Paulo, metrópole que diversificou suas centralidades e dispersou a população engajada na reflexão sobre sua condição. Nem mesmo os que pesquisam a produção de capital paulista podem ser vistos à noite caminhando pelas ruas de seu objeto de estudo. Sinal dos tempos, uma mudança que Ab’Saber observou com agudo olhar político.

Um intelectual engajado

Após atingir o ponto mais elevado da carreira universitária em sua época, o cargo de professor Titular, Aziz Ab’Saber ocupou diversos postos relevantes. Inicialmente foi Diretor do Instituto de Geografia da USP, no período de1969 a1982. Talvez uma das maiores realizações de Aziz no Instituto de Geografia tenha sido o estímulo a publicações, que ajudaram a difundir sua produção e de outros pesquisadores, como os boletins denominados Geomorfologia e Geografia e Planejamento. Foi nesses boletins que o professor Aziz divulgou grande parte de sua vasta produção acadêmica.

O Instituto de Geografia, lamentavelmente desativado em 1985, abrigou diversos laboratórios de pesquisas geográficas, como o de Geomorfologia, Pedologia, Planejamento, Geografia Econômica, Cartografia e de Climatologia, que reuniam pesquisadores do Instituto e docentes do Departamento de Geografia da USP para a realização de pesquisas. Com o fim do Instituto, eles foram repassados ao Departamento, não sem gerar alguns atritos.

O professor Aziz também se destacou fora do âmbito acadêmico. Ele foi presidente do CONDEPHAAT – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo, onde exerceu a função de Conselheiro. Cabe a este órgão o papel de definir e fiscalizar o patrimônio histórico do Estado de São Paulo.

Antes de ocupar a presidência do CONDEPHAAT, o professor Aziz publicou um texto de suma relevância (Ab’Saber, 1977), no qual idealizou e justificou o tombamento da Serra do Mar. Com esse texto ele inaugurou novos procedimentos de gestão do patrimônio natural no estado de São Paulo, cuja repercussão ganhou escala nacional e internacional.

A derrota eleitoral de Luis Inácio Lula da Silva em 1989 não passou em vão para Ab’Saber. Algum tempo após o anúncio do resultado da apuração, Lula anunciava a formação de um ministério paralelo para acompanhar as ações do presidente eleito e propor alternativas ao país. Aziz foi indicado Ministro paralelo do Meio-Ambiente, com apoio de ambientalistas e de movimentos sociais. Esse fato gerou enorme expectativa na comunidade ambientalista, e diria que talvez até nele próprio, de que fosse indicado Ministro de Meio-Ambiente em 2002 quando finalmente Lula venceu as eleições presidenciais, fato que não se confirmou.

A aproximação com Lula ocorreu durante a Caravana da Cidadania, uma série de viagens que o professor realizou junto a uma comitiva comandada pelo político com o objetivo de conhecer o interior do país. Nessa série de viagens Aziz acompanhou Lula comentando não apenas aspectos naturais, que ele conhece e descreve como raras pessoas em um estilo muito próprio, mas, principalmente, alternativas de gestão envolvendo as comunidades dos vilarejos que percorreram.

Apesar de declarar diversas vezes ser amigo de Lula, não poupou críticas a projetos desenvolvidos em sua gestão, como a transposição do rio São Francisco e o projeto de flexibilização da gestão de florestas públicas que permite e participação da iniciativa privada.

Outra ação de destaque foi a presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, cargo que ocupou entre1993 a1995. As reuniões anuais de Vitória (1994), São Luís (1995) e São Paulo (1996), presididas por Ab’Saber, levaram sua marca nos temários gerais, respectivamente, “A ética e a consolidação da democracia”; “Ciência e desenvolvimento auto-sustentável” e “Ciência para o progresso da sociedade brasileira”. Esses temas refletem inquietações e o engajamento político do geógrafo, que sempre esteve alinhado com os temas da sociedade brasileira, além da temática ambiental, outra característica de sua produção.

Mais uma manifestação de Ab’Saber com repercussão nacional foi o projeto Florestas para o Meio-Ambiente, conhecido como Floram. Segundo Ab’Saber a idéia foi do professor da Universidade de Munster Wilfried Bach, que a apresentou ao engenheiro Werner Zulauf. Esse a transmitiu ao então reitor da USP, José Golbemberg, que indicou o professor Jacques Marcovitch para convidar alguns notáveis para debater o projeto (Ab’Saber, 2003 e 1990). A participação de Aziz foi fundamental na elaboração do programa, que consistia em reflorestar com mata nativa áreas degradadas e, em outras, plantar árvores com fins comerciais para gerar energia.

Sobre as políticas públicas brasileiras, foco de suas críticas, sugere que devem buscar uma síntese entre o regional e o setorial, integrados ao nacional (…). Se não houver uma administração mais direta, não haverá soluções para um país de dimensões continentais como o Brasil (Ab’Saber, 1998).

Cabe destacar outra passagem em que dispõe sobre um método caro a geógrafos e outros especialistas em planejamento ambiental: o zoneamento ecológico-econômico.

Escreve Ab’Saber:

O esforço para realizar um zoneamento dito ecológico e econômico, de um espaço geográfico da ordem de grandeza de um grande domínio morfoclimático e fitogeográfico, é uma tarefa que implica muitos pressupostos. A saber: demanda uma reflexão orientada para o entendimento integrado do complexo natural da região, incluindo o conhecimento da natureza dos seus contrastes internos. Envolve uma metodologia ecodesenvolvimentista para as questões básicas de utilização dos espaços físicos e ecológicos (…). Envolve a recuperação correta das experiências anteriores (…). Implica um cruzamento dos conhecimentos sobre os fatos fisiográficos e ecológicos com os fatos da conjuntura econômica, demográfica e social da região. Além disso, tem que se proceder a uma avaliação do papel que as cidades e a rede urbana preexistente podem desempenhar nos processos de desenvolvimento incentivado. Em caráter obrigatório, precisam-se reunir toda a documentação sobre a extensão, a distribuição e a tipologia das áreas de preservação existentes no interior da área de estudo. Da mesma forma que deverá obter todos os informes sobre as infra-estruturas instaladas (Ab’Saber, 1996:12)

Essa série de procedimentos metodológicos indica que entre as preocupações do geógrafo estavam também questões vinculadas à dinâmica da sociedade tema que, em si, mereceria um trabalho de maior fôlego que o empreendido aqui.

Um intelectual reconhecido

Raros são os pesquisadores que conhecem em vida o prestígio e o reconhecimento de sua produção. Ab’Saber é um deles.

A capacidade de interlocução com vários segmentos sociais, como o acadêmico, o técnico e o dos movimentos sociais, esse em menor escala, tornou o professor paulista uma referência obrigatória em diversas reuniões públicas. Assembléias de professores em greve na USP, manifestações de quilombolas contra a construção de barragens para geração de energia, a participação em comissão de negociação entre reitores das universidades estaduais paulistas e professores em greve, eventos acadêmicos promovidos pela Associação dos Geógrafos Brasileiros são algumas situações nas quais presenciamos a atuação do professor Aziz.

Essa disponibilidade para envolver-se com a luta política e institucional pode ter sido um dos fatores que levou à premiação de Ab’Saber no X Encontro de Geógrafos da América Latina – EGAL, realizado na USP em 2005. Na ocasião, dividiu o prêmio de geógrafo da América Latina com o não menos ilustre professor Manoel Correia de Andrade.

Outros prêmios relevantes vieram da produção de livros. A obra Amazônia: do discurso à práxis, editada pela Editora da USP em 1996 ganhou o Prêmio Jabuti em 1997 na categoria Ciências Humanas, o mais prestigioso para autores brasileiros. Nesse livro o professor discute a importância do zoneamento ecológico econômico na Amazônia. Mais que isso, ele propõe uma metodologia para se chegar ao zoneamento, que deve partir dos problemas emergenciais da região com o objetivo de identificar células espaciais partindo dos grupos humanos. Também merece destaque a análise que apresenta sobre os impactos ambientais na faixa Carajás-São Luís decorrentes da exploração mineral e do transporte ferroviário.

Em 2005, a Câmara Brasileira do Livro conferiu ao professor Ab’Saber mais um Jabuti na categoria Ciências Humanas. Dessa vez pela obra São Paulo: ensaios entreveros, outra publicação da Editora da USP porém, em parceria com a Imprensa Oficial em 2004. Entre os diversos ensaios sobre São Paulo que abordam temas como enchentes e o controle ambiental, encontram-se também um artigo sobre o tombamento da Serra do Mar e um depoimento sobre o professor francês Pierre Mombeig, que integrou a missão francesa que fundou a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP, em1934, aquem Aziz chama de mestre. Por fim, cabe destacar as inúmeras fotografias que integram o livro, todas de autoria de Ab’Saber, indicando mais uma virtude do professor: a de bom fotógrafo. Nesse caso, nada surpreendente. Afinal, quem consegue olhar a natureza e descrevê-la com a riqueza de detalhes que o professor Aziz consegue imprimir deveria mesmo ter sensibilidade para selecionar uma imagem em uma fotografia.

É relevante apontar que um pesquisador consagrado pelos estudos dos processos naturais, em especial geomorfológicos, seja reconhecido pelos pares da área de Ciências Humanas. Os dois prêmios citados acima indicam que o mestre extrapolou sua especialidade. Ele avançou e muito pelas veredas da política. Não se limitou a acompanhar a dinâmica da natureza. Observou, e de forma aguda, a condição humana ao longo do século XX e no início do XXI.

O engajamento político nutriu a veia humanística desenvolvida pela vivência com condições sociais adversas. Sensibilidade que, em si, não basta. Como afirmou, o hábito de ouvir e de ler pessoas de expressão contribuiu para formar um pesquisador especial e raro.

Considerações finais

O que escrever como conclusão? Insistir que o professor Aziz Ab’Saber é um dos maiores pesquisadores que o Brasil já produziu? Ressaltar seu engajamento na luta política? Destacar suas críticas, mesmo a quem ele considera no nível pessoal? Comentar prêmios e outras distinções conferidas ao mestre?

Homens como esses são raros. Por isso seu reconhecimento tanto entre os geógrafos quanto pela comunidade acadêmica brasileira. O mais relevante, em nosso ponto de vista, é a síntese que o professor Aziz consegue atingir. Um pesquisador rigoroso, que ganhou visibilidade, antes de mais nada, por sua produção acadêmica. Depois, imprimiu marcas em instituições públicas em que atuou por meio de ações técnicas e científicas. Por fim, combinou sua notoriedade com apoio a lutas políticas e críticas ao poder estabelecido.

Realçar estas características do professor Aziz serve, antes de mais nada, ao estímulo a tantos outros jovens que lidam com adversidades em seu cotidiano. A difícil trajetória, dada suas condições sociais, não o impediram de se tornar um grande pesquisador.

O recado principal que o mestre inspira é justamente apontar o quanto perde um país que não apresenta oportunidades a jovens, que acabam desviando para outras frentes seus talentos pessoais por falta de vagasem Universidades. Imaginemosquantos entre os alunos que abandonam os bancos escolares desde o ensino fundamental para trabalhar ou são tragados pela criminalidade com a ilusão da vida fácil poderiam vir a se tornar pesquisadores. O engajamento pelo ensino público e gratuito de qualidade é uma obrigação de todos que estão inquietos com as condições sociais do Brasil. Vagas e qualidade de ensino devem ser aglutinadas para a formação de cidadãos críticos que conheçam sua realidade e que adquiram instrumentos para alterá-la.

O professor Aziz o fez, mas é um caso isolado. Precisamos de muitos outros como ele, o que não depende de saídas individuais mas sim de políticas públicas que destinem recursos à qualificação de estudantes e professores. Afinal, sem qualidade, como insiste o mestre Ab’Saber, não se avança.

Para finalizar, trago a lembrança de uma passagem, entre outras vivenciadas junto ao professor Aziz. Certa ocasião, demonstrando uma humildade pouco comum entre intelectuais, ele adentrou ao Anfiteatro do Departamento de Geografia da USP para sentar na platéia e assistir a uma apresentação promovida pela Associação dos Geógrafos Brasileiros. Da platéia, onde me encontrava, era impossível não perceber a presença de Aziz Ab’Saber, a começar pelos seus cerca de1,80 mde altura. Ele ouviu a exposição do conferencista e foi saudado pelo coordenador do evento. Em resposta, apenas acenou. Mestre é assim mesmo: até quando não fala nada ensina…

O artigo do Professor Wagner Costa Ribeiro foi publicado originalmente na Espaço@Ação de 2007, uma publicação da UNESP

Agradecemos ao professor Wagner Costa Ribeiro por autorizar a reprodução do texto na íntegra e também a assessoria de imprensa da USP pela ajuda nesse processo.

Wagner Costa Ribeiro* é Geógrafo (Universidade de São Paulo – 1986) e Doutor em Geografia Humana (Universidade de São Paulo – 1999), é professor Titular do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo, que presidiu entre 2006 e 2008. Obteve a Livre Docência em 2004, também na USP, e realizou estudos de Pós-Doutorado na Universidad de Barcelona. Foi professor visitante da Universidad de Sevilla em 2008. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia Política e meio ambiente, atuando principalmente nos seguintes temas: políticas públicas ambientais, relações internacionais e meio ambiente, gestão dos recursos hídricos, ordem ambiental internacional e cidade e meio ambiente. É coordenador do Grupo de Pesquisa de Ciências Ambientais do Instituto de Estudos Avançados da USP e autor de A ordem ambiental internacional (2001 e 2005 – segunda edição) e Geografia política da água (2008), entre outros livros.

4 Comments

  • Janaína disse:

    Uma triste perda, ótimo testo!

  • Roberta disse:

    Ótima entrevista, porém poderiam editar o texto corretamente para facilitar a leitura…

  • RONALDO NATALINO CICILIATO disse:

    AZIZ AB´SABER…grande intelectual Brasileiro,exemplo de pesquizador que andou pelos sertões desde Brasil imenso,para nos trazer a verdadeira noção de nosso ESPAÇO…O Espaço Brasileiro…Grande Mestre…sentiremos sua FALTA…Ronaldo N Ciciliato-Geográfo e professor a “30 anos”…Londrina-PR

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