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Elisa Marconi e Francisco Bicudo

                      Eram os loucos anos 1920. O mundo ocidental havia saído do horror que foi a 1ª Guerra Mundial e vivia arroubos de vanguarda e expansão de fronteiras, antes que a crise econômica planetária que começou com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, viesse lhe aparar as asas. Industrialização, crescimento das cidades, expansão demográfica, avanços científicos e tecnológicos. Todas essas novidades também conheceram manifestações e deixaram registros em terras brasileiras. Nos campos das Artes e da Cultura, era o tempo do Modernismo, um movimento de intelectuais e artistas que sugeriam criação sem barreiras e experimentação, além de e questionarem fortemente aquilo que chamavam de arte tradicional. Esse grito aconteceu no país todo: Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, mas foi aqui em São Paulo que a união dos modernos virou uma articulação coesa e organizada, que pretendia conduzir o avanço da arte moderna.

Essa aventura acaba de ganhar um narrador convidativo: o livro recém-lançado em>1922 – a semana que não terminou (Ed. Cia das Letras), do jornalista Marcos Augusto Gonçalves. “Quem quer entender o que foi a Semana de 22, quem foram seus personagens, qual era o papel dessas pessoas na sociedade e na Cultura, e o contexto sociocultural que abrigou o evento vai encontrar tudo isso no livro”, provoca o autor. A obra navega num gênero que vem atraindo um público significativo, a reportagem histórica. A explicação é simples: em linguagem jornalística – portanto mais acessível ao leitor comum – e com todas as características de uma matéria – como apuração, fontes confiáveis, explicação dos termos mais herméticos –, as passagens mais interessantes da história são recontadas. 1808 e 1822 (Ed. Planeta), ambos do jornalista Laurentino Gomes, e Náufragos, Traficantes e Degredados, e A Coroa, a Cruz e a Espada (Ed. Objetiva), do também jornalista Eduardo Bueno, são outros bons exemplos dessa fatia.

Gonçalves conta que a proposta para fazer o livro partiu da editora, com a intenção de retomar a importância da Semana de Arte Moderna, quando se comemora 90 anos do evento. A princípio, o jornalista achou que talvez não fosse uma boa ideia, porque esse era um tema já muito trabalhado. No entanto, ao se aproximar dos textos, de alguns documentos e das biografias dos principais atores daquele momento, foi impossível não agarrar o projeto. “Foram dois anos de trabalho, divididos em quatro frentes. Primeiro li e reli quase tudo que havia sido escrito sobre a Semana. Livros, pesquisas acadêmicas, obras mais didáticas. Tudo”, conta o autor.

A segunda etapa foi entrevistar. “Conversei com quem viveu a história de perto. [O crítico literário e professor da Universidade de São Paulo] Antônio Cândido, que conheceu Oswald e Mário de Andrade, foi muito importante”. A terceira etapa talvez tenha sido a mais emocionante e, certamente, a que deu o tom entusiasmado da obra. A grande maioria dos envolvidos com a semana já faleceu e, se esse fato irrefutável impediu o jornalista de entrevistar as testemunhas da história, o advento da gravação sonora resolveu o impasse. “Os Museus da Imagem e do Som de São Paulo e do Rio de Janeiro possuem acervos bem generosos. Neles, pude ouvir os depoimentos de Menotti del Pichia, Di Cavalcanti, Guiomar Novaes, Tarsila do Amaral, que não participou da Semana, mas estava nessa turma, e de tantos outros veteranos do Modernismo”. Para Gonçalves, a experiência de ouvir as vozes desses personagens foi um diferencial positivo. Por fim, o repórter foi aos documentos nos arquivos dos estados, na Casa de Rui Barbosa e em outros centros de referência que guardam as provas materiais daquele momento raro, que – a bem da verdade – teve seus ápices em três dias, 13, 15 e 17 de fevereiro.

Nessas datas é que houve a apresentação dos escritores, poetas, artistas plásticos e pensadores. Foi nessa trinca de dias que a arte brasileira passou a olhar para o futuro. O que durou uma semana mesmo foi a exposição de 100 obras de arte no saguão do Teatro Municipal de São Paulo. A reportagem histórica, aliás, relata com detalhes tudo o que aconteceu naqueles dias. As vaias e as aclamações. A expectativa e as reações da imprensa local e nacional. Tudo baseado nas informações que Gonçalves conseguiu colher e organizar. Além disso, o livro trata de derrubar alguns mitos. O que está contado ali passou por apuração jornalística e o que não encontrou comprovação foi explicado dessa maneira para o leitor. Um exemplo: “Aquele poema Ode ao Burguês, de Mário de Andrade, é tradicionalmente apontado como um dos que foi declamado numa noite no Municipal. Não há nenhuma prova real, nem em documentos, nem em relatos, que essa declamação tenha existido”, exemplifica o jornalista.

Cultura de identidade brasileira
O nome do livro – 1922, a semana que não terminou (– faz referência a duas outras obras: 1822, já citada aqui, e 1968, o ano que não terminou (Ed. Nova Fronteira e Ed. Planeta do Brasil), do jornalista Zuenir Ventura. Entre risos, o autor conta que tudo começou quase como uma brincadeira, e era assim que ele se referia ao projeto que estava escrevendo sempre que ia falar com a editora. E o nome acabou pegando. “Laurentino foi meu professor no mestrado e meu mestre no jornalismo, tenho certeza que vai me perdoar. E o livro do Zuenir traz essa ideia da continuidade, da influência que resiste ao tempo”, comenta.

Pois então, quais seriam essas influências capazes de sobreviver 90 anos? Para o autor da obra, a primeira é a conquista da liberdade para a pesquisa e para a experimentação do artista.

“A semana foi um grito de liberdade contra as regras mais ortodoxas da estética que tentavam manter sob controle a produção artística”. O alargamento do horizonte que indica o que é e o que não é arte também é consequência direta da ousadia e das propostas dos modernistas. Por fim e, quiçá mais importante, na opinião do autor, é a “ideia de uma cultura brasileira que é sim muito brasileira, mas que também é internacional.

Em outras palavras, é a construção de uma cultura de identidade brasileira, com as marcas do Brasil, mas que está aberta para o mundo, dialoga com o exterior, se inspira no que o cenário mundial produz e oferece uma visão brasileira”, resume.
Essas ideias – especialmente essa última – desembocaram, por exemplo, no Manifesto Antropofágico, do escritor Oswald de Andrade, que propunha que a arte brasileira poderia estar aberta à influência do outro, poderia se adequar às características do outro, sem se perder. Ao contrário, fortalecendo as marcas, mas em diálogo e com a qualidade da arte internacional. Visionários, os modernistas da Semana de 1922 produziram um ideário sólido e incrivelmente atual, que, para o jornalista, ajuda a explicar, por exemplo, a globalização que o planeta vive há algumas décadas. “Desemboca na globalização sim, mas com um olhar crítico. Os modernistas nunca se afastaram do papel de críticos dos processos. Defendiam, entre outras bandeiras, que a gente não copiasse nada. Devíamos produzir com qualidade internacional, mas à luz das nossas características”, lembra o jornalista.

Uma década de vanguarda
A década de 1920, como vai se percebendo, era mesmo de vanguarda: o dinamismo dos acontecimentos, as cidades inchando de gente e abrigando indústrias e outras benesses da industrialização, a ciência e a tecnologia floresciam com o rádio, o telégrafo, as descobertas ligadas à medicina. Tudo isso, de acordo com Gonçalves, alterou a percepção do tempo. Tudo parecia andar mais rápido, mais corrido, e os modernistas defenderam, na verdade, que a arte acompanhasse – ou voltasse a ocupar o lugar de vanguarda – dos novos acontecimentos. Não foi à toa que São Paulo – a cidade que não pode parar – sediou esse avanço. Perceber essa aceleração de tudo – que começou a despontar sob o olhar sensível e crítico de Anita Malfatti, Villa-Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros – dá elementos para leitores de todas as idades – leigos ou especialistas – entenderem melhor o Brasil de hoje. “Não dá para perceber onde a gente está e para onde seguiremos sem saber de onde estamos chegando. E a Semana de Arte Moderna deu vários desses apontamentos para a gente”, defende Gonçalves.

É natural – a ligação carnal com a Semana vai aos poucos se perdendo no tempo (quem viveu aquele momento já está muito velho, ou já não está mais aqui para contar a história), de forma que os mais jovens vão aos poucos se afastando daquele episódio. Por isso também o autor escreveu o livro, pensando muito nos estudantes e adolescentes que não têm a visão do conjunto, mas certamente manifestam interesse por música, poesia, artes visuais, literatura, movimentos de rebeldia e vanguardas de uma forma geral.

“Professores e especialistas em artes plásticas, literatura, música também vão gostar e aproveitar bastante o que a obra apresenta”. Gonçalves sugere que para os mais jovens há um atrativo extra nessa narrativa: o tempo de hoje parece muito com o tempo dos Modernistas. Não só pelos avanços da ciência e da tecnologia, ou pela sensação de pressa, mas também porque a arte hoje se impõe nas ruas, nos ônibus, nas intervenções, brinca com as linguagens e com a língua portuguesa, se aproximando das pessoas, e quem puxa essa tendência é a juventude, que é quem percebe primeiro – exatamente como os modernistas – que as coisas, hoje, estão mudando.

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