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Destaque

PRIMAVERA FEMININA

By 13/11/2015No Comments

Mulheres tomam as ruas para combater cultura conservadora e machista e reafirmar:  meu corpo, minhas regras.

 

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

 

A Polícia Militar de São Paulo divulgou que eram 3500 manifestantes. Os organizadores, liderados pela frente Povo Sem Medo, cravaram 50 mil. O número real, qualquer que seja ele entre um extremo e outro, é certamente menos importante que o barulho que aquelas meninas, jovens, senhoras e mulheres mais velhas conseguiram fazer no último domingo, 08/11, em São Paulo. O ruído do protesto talvez não tenha sensibilizado os meios de comunicação tradicionais – mas esses estão mesmo apanhando dos novos ventos –, mas nas redes sociais e, principalmente, no imaginário e no ideário da sociedade brasileira, o protesto causou rebuliço. Tem sido assim há cerca de um mês. Quase todos os dias há alguma manifestação majoritariamente de mulheres contra o PL 5.069/13, projeto de lei de autoria do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ) que dificulta a realização de aborto mesmo em casos previstos em lei e transforma em crime contra a vida facilitar a interrupção da gravidez. É mais uma iniciativa que tem potencial para criminalizar a vítima.

 

A cientista política Daniela Mussi adverte, no entanto, que o PL foi o apenas estopim, a gota que fez transbordar o copo. “Essa sensação que temos de que explodiu um movimento é real. É como se as mulheres não aguentassem mais ficar caladas diante de tudo. O projeto de Cunha serviu de gatilho, mas as mulheres estão pleiteando algo muito maior”, defende.  Na análise dela, uma série de vetores estão alimentando esse processo: a indignação das mulheres contra assédio no transporte público, as demonstrações públicas de desejo por uma garota de 12 anos participante de um programa de TV e o recrudescimento das políticas restritivas relacionadas às mulheres, como o próprio PL 5069/13.

 

Daniela, jornalista de formação, acabou de defender o doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos anos, além das pesquisas de mestrado e doutoramento, dedica-se a promover e divulgar temas caros aos movimentos feministas no Brasil, seja nos artigos científicos que publica, seja na revista Outubro ou no blog Junho. Para ela, o feminismo de hoje “já é bem diferente de períodos anteriores, porque tem uma agenda clara e ganhou públicos novos, por razões variadas”.

 

Daniela conversou com a Giz de Curitiba, no Paraná, onde foi passar um tempo com sua família depois da defesa do doutorado. Os melhores trechos da entrevista você acompanha aqui:

 

Apesar de não estar muito em evidência na grande mídia, a sensação geral é que o movimento feminista explodiu, saiu da academia, dominou as redes sociais e ganhou as ruas do Brasil nas últimas semanas. A senhora acha que a gente pode mesmo falar de uma Primavera Feminista ou seria um exagero?

A gente pode falar nesse movimento sim. Não é exagero não. Já faz algum tempo que essa explosão está em gestação e, agora, por conta de fatos muito difundidos, essa força ganhou as conversas, os posts e as ruas. Agora, é muito importante ressaltar que os movimentos se publicizaram agora, mas não foram inventados agora. A gente costuma dizer que o movimento feminista viveu um período de maré baixa e, nele, só as manifestações do 08 de março é que vinham a público. Talvez um pouco na Marcha das Vadias, do início dos anos 2000 também. Nos últimos anos, as políticas públicas se intensificaram e o movimento se institucionalizou muito. Virou secretaria, ministério, Lei Maria da Penha e tal. Isso foi bom, porque garantiu uma série de direitos. Mas, por outro lado, não renovou o debate, não conquistou novas pensadoras, não levou para a sociedade comum. De qualquer jeito, mesmo restrito a núcleos menos expostos, o debate seguiu, falando de gênero, de raça, de diferenças econômicas e sociais. E foi essa discussão que não parou que alimenta o movimento hoje. Como se fosse água a ponto de ferver – e uma hora ferve mesmo.

 

E todas essas questões formaram o caldo de cultura…

Que alimenta a discussão hoje, dá subsídio suficiente para motivar as mulheres a se manifestarem, a exporem os assédios que sofreram, a publicizar as violências a que são submetidas diariamente. Acho que a indignação vai crescendo à medida que se vai percebendo quanto o assédio é naturalizado no Brasil, quanto os discursos que normalizam os abusos são comuns e frequentes, como culpar a vítima é um recurso banal aqui. O PL de Eduardo Cunha parece que foi a gota que entornou essa indignação, porque as mulheres reivindicam o direito sobre seus corpos e já não admitem que o Estado faça essa gestão.

 

Ao mesmo tempo, algumas iniciativas do poder público vão na mão contrária e começam a proibir até o debate sobre gênero…

Exatamente. As bancadas municipais, estaduais e federais, muito conservadoras, aprovaram esse silêncio a respeito das questões de gênero nas escolas. As questões de gênero estão intimamente ligadas ao feminismo.

 

E nesse caso, funcionou como um movimento pendular. Quanto mais aperta de um lado, mas o outro se movimenta.

Isso, como uma maré que sobe e uma maré que baixa. O movimento conservador também está muito intenso. Eles rivalizam e um provoca a ação do outro. Quando a indignação por direitos emerge, fica incontrolável. Não tem lei que cale isso. E teve o ENEM também, que faz parte do sistema educacional instituído – exatamente como a medida que excluiu o termo gênero do material educacional – mas que citou Simone de Beauvoir, ícone do feminismo. Mais uma prova de que o assunto está realmente na agenda do Brasil. E mesmo entre as instituições, há uma disputa importante. Alguns parlamentares se manifestaram contrários e sugeriram doutrinação porque o ENEM trouxe a questão da violência contra a mulher, uma pauta, segundo eles, de esquerda. O fato é que naquele dia, todos os estudantes envolvidos com o ENEM e as famílias de todos eles pararam para pensar nas agressões contra as mulheres.

 

A senhora também tem insistido que o feminismo brasileiro tem um histórico que é pouco comentado, como se o movimento atual fosse absolutamente espontâneo.

Tenho chamado a atenção para esse aspecto, porque quem se depara com as notícias, os posts, as passeatas, acha que o movimento atual é novidade absoluta e que brotou do nada. Não é verdade. O Brasil tem uma tradição no pensamento feminista que é muito importante. Principalmente entre as professoras e pesquisadoras das universidades, muito já foi produzido e pensado. Os avanços que os governos mais recentes promoveram, por exemplo, estão ligados a essa produção de conhecimento das intelectuais e das militantes do feminismo brasileiro. Agora, lembrar disso não é só para honrar o que veio antes não. É fundamental ligar os fios do movimento de hoje com o de ontem para que as feministas contemporâneas não se percam depois que o PL cair.

 

Porque se toda essa força não for bem encaminhada, ela pode se perder caso o projeto que dificulta o aborto seja aprovado ou caia?

Sim, porque é uma combustão muito forte agora, mas o pretexto para isso é o projeto. Quando ele passar, essa força toda pode se perder. Qual é a saída para que isso não se esvaia? Dar às mulheres de hoje contexto, subsídio, histórico. Isso fortaleceria as reivindicações, traria o respaldo histórico que empodera.

 

Até porque as mulheres desse novo feminismo não estão ligadas a partidos, ou às instituições mais clássicas da luta pelos direitos das mulheres, não é?

Elas são jovens, não ligadas a partidos, ou aos movimentos mais antigos. Elas são blogueiras, youtubers, estudantes universitárias. Se associam à causa menos por ideário político e mais por percepção dos direitos civis. Estão ligadas de alguma maneira aos discursos em defesa do casamento igualitário, à criminalização da homofobia e outros temas que atravessam o cotidiano delas. Elas participam de coletivos que se apoiam nas redes sociais. Por isso não têm a memória que traria mais solidez à luta delas. Conhecer o passado é a chave para que o movimento das feministas hoje tenha futuro, horizonte, vá em frente.

 

Talvez seja esse o ponto que a escola mais possa contribuir…

Com certeza é. Ainda que as casas legislativas não estimulem o debate sobre gênero, não impedem de ensinar história. E a história do movimento feminista no mundo pode ser conteúdo em várias disciplinas. Conhecer esse movimento é contextualizar vários avanços que hoje nos parecem naturais: voto feminino, divórcio, cargos de chefia, vagas em universidade, cadeiras no parlamento e etc… Não tem nada de proselitismo ou doutrinação. É História. A escola pode trabalhar isso com alunos e alunas desde pequenos. Tem mais algumas coisas: se cai no ENEM, é assunto para a escola. Se mais mulheres que homens se formam em universidades, é assunto da escola.

 

E também nas escolas e universidades têm surgido grupos que discutem o feminismo…

Sim, nas públicas e nas particulares. Nos colégios, a questão do assédio, das roupas apropriadas, dos comportamentos, é que pegam mais. As meninas mais jovens sentem isso na pele, andam com medo, mas não querem deixar de usar short. Não aceitam que digam a elas que essa escolha autoriza a violência. E assim se formam grupos, campanhas, hashtags, postagens coletivas. Se o movimento souber abraçar essas manifestações, vai se fortalecer muito. Se essas garotas tiverem respaldo histórico, seguirão brigando pelos direitos que acreditam ter.

 

Essa pauta que brota do cotidiano, das indignações, do direito se mover pela cidade sem impedimentos e sem violência, lembra muito o início das manifestações de junho de 2013, não?

Lembram muito, né? E os cartazes, a irreverência nos pedidos, as postagens divertidas, a mobilização pelas redes sociais, além da idade dos manifestantes, tudo isso tem um cheiro parecido. Mas tem uma coisa que faz toda a diferença. As manifestações de junho tinham agenda muito mais difusa, uma pauta muito mais solta, talvez por isso tenha sido capturado muito mais facilmente pela direita. Na Primavera Feminina, a pauta é muito clara e incisiva: direito sobre o corpo. São, portanto, pautas muito democráticas, de cuidado com a sociedade. Vai ser mais difícil o movimento conservador – que está atuando sem descanso – conseguir capturar essa força. São agendas muito diversas de um lado e do outro, diferente do que aconteceu em 2013. Um cuidado que as novas feministas devem ter é debater com cuidado o apoio masculino às reivindicações. Há uma ala, pequena ainda, que é contrária, que acha que apoio dos homens é uma forma de paternalismo, de machismo. O movimento ainda não chegou num ponto de rachadura, em que as duas visões ficam incompatíveis, mas discussões precisam avançar para que essas diferenças não matem a primavera.

 

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