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Cultura

Sobre o universo comum

By 30/10/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

A notícia da publicação de Universalismo e Diversidade veio no final de setembro e, desde então, ficou evidente que a obra merecia um olhar mais atencioso. Recém-lançado pelo professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Renato Ortiz, o livro debate a ideia da diversidade que, contemporaneamente, teria ganhado status de valor universal. E, segundo o autor, essa percepção pode ser vista como algo que vai mais além do que as meras diferenças culturais entre povos e agrupamentos humanos e vale até encará-la como uma espécie de emblema da globalização. Mas, não se engane. Nada é assim tão simples. Enquanto discorre sobre a diversidade como valor, Ortiz sugere também que não dá mais para falar do mundo a partir de uma perspectiva eurocêntrica. Nem, contudo, “reduzi-lo às identidades específicas. É preciso falar das duas coisas: o comum e o diverso. Surge assim uma tensão, o que denominei de mal-estar contemporâneo”, defende, em entrevista publicada pelo Jornal da Unicamp, edição de setembro. Nas primeiras linhas da obra, ele explica melhor: “Existe atualmente um mal-estar do universalismo. A revolução digital, os meios de comunicação, as finanças, as viagens, o imaginário coletivo do consumo nos levam a valorizar os traços compartilhados destes tempos de unificação planetária. A própria noção de espaço se transformou; os símbolos e signos culturais adquirem uma feição desterritorializada, descolados de suas cores nacionais ou regionais, redefinindo-se no âmbito da modernidade-mundo. Diante desse movimento real das sociedades, uma desconfiança se insinua. O mal-estar é uma sensação imperceptível de desconforto. É palpável, mas disperso; sua manifestação é sinuosa, difícil de ser identificada. Porém, malgrado sua imprecisão, ele é evidente, tangível”.

A discussão proposta pelo sociólogo pode favorecer uma compreensão mais profunda do mundo e do tempo contemporâneos, em que não se ousa levantar o dedo contra a diversidade, mas, simultaneamente, homossexuais são mortos, muçulmanos são expulsos de suas casas, estrangeiros são mal vistos, a classe C é frequentemente humilhada, entre tantas outras situações complexas – e cotidianas. Em outro trecho do livro, ele lembra que “a situação de globalização implica a necessidade da busca por respostas consensuais em relação aos problemas comuns, mas nossas certezas em relação às crenças anteriores se esvaneceram. O universalismo dos filósofos iluministas já não nos serve de guia. As guerras, a dominação tecnológica, os desmandos da colonização, o eurocentrismo, a divisão das sociedades em civilizadas e bárbaras, o racismo são fatos inegáveis. Para enfrentá-los, de nada adiantaria certo malabarismo intelectual a fim de compreendê-los como desvios de uma modernidade inacabada. Paradoxalmente, no momento em que determinada situação histórica aproxima a todos, o universal, como categoria política e filosófica, perde em densidade e em convencimento. Ressurge, assim, um debate antigo, mas que agora se reveste de formas distintas: o relativismo. Ele está associado às reivindicações identitárias, ao multiculturalismo, aos direitos indígenas, valorizando a diversidade cultural como traço essencial das sociedades humanas. Vivemos uma mudança do humor dos tempos. As qualidades positivas, antes atribuídas ao universal, deslocam-se para o “pluralismo” da diversidade”.

Para debater melhor essas ideias, a revista Giz conversou por e-mail e com exclusividade com o professor Renato Ortiz que, diretamente da França, respondeu às perguntas propostas.

Pensando no seu novo livro, em que medida e de que forma o comum e o diverso representam e expressam os conflitos e tensões das nossas sociedades contemporâneas?

É preciso entender que o comum e o diverso não se encontram necessariamente articulados aos conflitos e às tensões sociais. Essas duas dimensões fazem parte da vida em sociedade. O que procurei problematizar em meu livro foi a tensão que se desenvolve entre universalismo e diversidade, sendo que “diversidade” é considerado como um novo emblema de nossa contemporaneidade. Ele encerra um conjunto de sentidos que nos remetem a um mundo global, tecnológico, no qual as diferenças étnicas, sociais, de classe, e não nos esqueçamos, de mercado, se manifestam.

Há quem diga que, ao valorizar o comum, podemos escorregar em processos autoritários; em contrapartida, a percepção de múltiplas identidades pode levar a certo relativismo. Como equacionar essas duas condições (o comum e o diverso), pensando sempre na construção de projetos e sociedades democráticas?

 De fato esta visão existe, eu diria que ela se transformou, inclusive, numa espécie de senso comum planetário. No entanto, o comum não implica necessariamente a negação do diverso, e vice-versa. O problema é entender como se dá a relação entre esses dois termos. Dou um exemplo: as cotas. Uma perspectiva crítica a elas dirá: “as cotas são uma forma de discriminação social, fundamentam-se na negação dos valores universais promovendo alguns indivíduos em detrimento dos outros”. Logicamente o argumento está correto, porém, ele oculta um aspecto importante. A reivindicação pressupõe justamente os valores universais anteriores: “por que os negros foram submetidos a uma desigualdade histórica na sociedade eles merecem receber um tratamento diferenciado”. Ou seja, a ideia de igualdade é o fundamento da contra-argumentação. Neste sentido diz-se: uma política de diversidade é decisiva para promover a igualdade social. Mas “diversidade” pode também associar-se à estratégias de mercado (há no livro um capítulo específico sobre o tema). Neste caso o argumento é outro: “queremos vender nossos produtos em escala global para isso é preciso respeitar a diversidade dos povos”. Ou seja, sabe-se que o mercado não é homogêneo, ele é segmentado, valoriza-se sua segmentação através da ideia de diversidade. Um projeto democrático deve saber distinguir entre essas duas situações bastante distintas.

Diante de tantos conflitos e perseguições (guerras, disputas territoriais, fechamento de fronteiras aos exilados), é de fato possível afirmar que a ideia da diversidade emerge como valor universal no mundo contemporâneo?                

Veja, a afirmação: a diversidade é um valor universal, é um oximoro. O que é um oximoro (por exemplo: silêncio ensurdecedor)? Trata-se de uma figura de linguagem formada por dois elementos contraditórios. Universal e diversidade não podem ser colocados um ao lado do outro sem que exista uma tensão. Porém, a virtude de um oximoro é que ele exprime, através desta contradição, alguma coisa de verdadeiro. Evidentemente a diversidade não pode ser universal, entretanto, o que importa é que ela, no mundo atual, transformou-se num valor que acreditamos ser universal. A questão é portanto saber o que estamos dizendo com isso. No fundo, o tema somente adquire sentido no mundo do qual fazemos parte. Por que o mundo é global valoriza-se o diverso.  Não faz sentido falarmos de “diversidade”, da forma como a entendemos hoje, no passado. Quando os Estados Unidos invadem o Vietnã ninguém pensaria dizer que eles combatem a diversidade do povo vietnamita. Trata-se de uma operação imperialista. Em contrapartida, os vietnamitas não retrucam, “respeitem nossa diversidade”, eles simplesmente querem a independência nacional. A problemática da diversidade somente adquire uma conotação positiva neste mundo em que vivemos. Ao dizermos que ela é “universal” podemos defendê-la. Mas qual o significado disso?

A globalização que privilegia o capital não nos afasta desse ideal?

 Não apenas a globalização dos mercados que evidentemente é importante. Mas consideremos o racismo. Ele pressupõe a diferenciação das “raças” para em seguida hierarquizá-las. Na Europa os movimentos de extrema-direita dizem o seguinte: “nós brancos somos diferentes de vocês árabes e negros”. “Respeitem nossa diversidade e permaneçam em seus países”. “Somos diferentes”. Neste sentido a afirmação não significa necessariamente pluralismo ou tolerância. Creio que devemos refletir sobre o contexto no qual os argumentos são utilizados. Sem o contexto eles tornam-se abstratos e muitas vezes confusos.

 Uma das propostas centrais do livro também é caracterizar a ideia da diversidade em distintos níveis e espaços (mercado, política, cultura…). Pode comentar e explicar?

 A ideia é mostrar como o seu significado se transforma ao considerarmos níveis distintos. A diversidade é uma quando falamos em direitos, outra ao nos referirmos ao mercado, outra ainda ao tratarmos de questões culturais como teatro, cinema, música. Ao considerar esses níveis diversos queria passar ao leitor a ideia de uma heterogeneidade de sentidos. Digamos que minha intenção foi a de olhar nossa contemporaneidade de maneira crítica, procurando me afastar das explicações consagradas pelo senso comum.

Pensando especificamente no Brasil – a sensação é de acirramento das intolerâncias e ódios políticos, ou seja, pouca disposição para trabalhar a diversidade. Há um momento específico que o senhor consiga localizar que represente essa fratura e ponto de partida nesse acirramento de ânimos?

O que estamos vendo no Brasil é uma intolerância de ordem política. Esta é a raiz do problema. Há uma polarização partidária que invade a vida quotidiana. Tudo se resume a um único problema: o governo e o Partido dos Trabalhadores. É preciso derrotá-los. Por isso o embate se acirrou. É como se existisse um processo eleitoral permanente. A linguagem ácida e agressiva utilizada na política está se transformando na linguagem das pessoas. Isso é perigoso.

Qual o papel das redes sociais nesse processo? Umberto Eco disse recentemente que as redes liberaram uma legião de idiotas…

Creio que Umberto Eco, com uma certa acidez, captou parte do problema. Mas é claro existe a outra parte. As redes sociais são um elemento novo nas sociedades contemporâneas mas o sentido que elas adquirem é diverso. Não existe uma homogeneidade de sentido. Pessoas encontram parceiros amorosos na internet, reúnem-se para beber Campari (os aficionados de Campari), encontram traços de sua árvore genealógica, alugam apartamentos, e evidentemente, fazem política. Esta heterogeneidade de intenções não cabe no singular “diversidade”. Do ponto de vista político, de uma certa maneira, as redes sociais traduzem a pluralidade dos pontos de vista existente na sociedade. Haverá os que estão à direita ou à esquerda. Por isso elas transformaram-se numa técnica exitosa de mobilização das pessoas.

E qual a contribuição de articulistas e comentaristas que ocupam cada vez mais espaço na chamada grande mídia nessa consolidação de uma cultura de ódio?

Existe hoje dois problemas em relação ao que chamamos de grande mídia. Um é estrutural. Houve uma transformação radical da forma como as notícias são veiculadas. O advento da internet implicou a redefinição do espaço público midiático. Ao lado disso, o jornalismo, para se adaptar ao mercado, foi obrigado a se redefinir também; o mundo do entretenimento não polpa ninguém. Outra dimensão, diz respeito à política. Devido ao clima de polarização partidária existente, as grandes empresas de comunicação transformaram-se em porta-vozes de uma visão míope da realidade brasileira. Sobretudo os jornais impressos e as revistas de circulação nacional tornaram-se instrumentos de oposição ao governo. O que se encontra em curso no Brasil é uma desvalorização consciente do espaço público. É isso que torna o jornalismo atual insatisfatório e insuficiente. Ele regrediu é parcial e se orgulha disso.

Os partidos políticos ditos tradicionais perderam o controle e o protagonismo sobre essa disputa política nacional? Grupos que atualmente organizam movimentos de rua com discursos bastante intolerantes (da volta da ditadura militar ao inconformismo com os direitos de negros, mulheres, homossexuais…) parecem atuar à margem dessa estrutura partidária. É um fenômeno novo? Quais os riscos?

 Há uma certa ilusão que diz: os partidos políticos acabaram. Diante do protagonismo das redes sociais eles teriam se tornado obsoletos. Esta é uma visão técnica do mundo. Como se os novos meios tecnológicos engendrassem as relações sociais. As redes sociais existem enquanto realidade fragmentada, elas não constituem uma totalidade. Evidentemente as novas tecnologias implicam em formas diferentes de se fazer política, abrem horizontes e permitem formas distintas de mobilização. Mas isso não muda a “essência” da política. Existe o Estado-nação, as formações partidárias, os sindicatos, os movimentos sociais. Tampouco devemos imaginar que elas impliquem um risco à democracia. Trata-se de um fenômeno que faz hoje parte de nosso quotidiano. As redes sociais não substituem o partido ou o Estado, elas também não inventaram a intolerância, promovem o que se encontra latente na sociedade. A fobia aos homossexuais apenas nelas se expressa mas sua origem é antiga, antiquíssima.

Quais os desafios colocados para quem continua pretendo fazer da tolerância e da diversidade valores fundamentais da democracia? Quais as responsabilidades do professor?

Houve uma época em que se pensava que democracia e modernização eram dimensões que inexoravelmente caminhavam juntas. A Ciência Política norte-americana dos anos 40, 50 e 60 não tinha dúvidas a esse respeito. Dizia-se assim que não existia democracia no Brasil por que o país não era moderno. A lógica do argumento era simples: bastaria nos modernizar para alcançar as virtudes almejadas. Isso é, e sempre foi, um equívoco. A democracia não é fruto do progresso tecnológico, tampouco da expansão do mercado. Ela é uma virtude frágil, sempre incompleta. É preciso renová-la incessantemente para que não desapareça. Neste sentido, a democracia é uma conquista, nada tem de perene. O melhor remédio para se combater a intolerância é reafirmar os valores democráticos, sobretudo quando os ânimos políticos se acirram e no espaço público manifestam-se grupos que desejam a volta dos “nostálgicos” da ditadura militar.

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