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CulturaDestaque

As bikes pedem passagem

By 02/04/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Ainda durante a campanha eleitoral, em 2012, o então candidato à Prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad (PT), levantou a bandeira das ciclovias. Eleito, estabeleceu que a meta da atual administração seria construir e sinalizar 400 quilômetros de vias próprias para as bicicletas, até o final de 2015. Ao abrir espaço para esse modal, a expectativa do poder público é oferecer, junto com os corredores de ônibus, alternativas de transporte a quem não aguenta mais ficar travado e perder horas nos congestionamentos paulistanos. Abrir ciclovias nesta metrópole, no entanto, parece não ser tarefa das mais fáceis.  Não se assuste com os xingamentos, ameaças e até agressões que pode receber quem se arrisca a andar sobre a específica faixa vermelha. A razão? A tentativa de mexer com um sistema que, aparentemente, vivia em equilíbrio, com o carro particular tido como soberano absoluto, além da disputa por espaço e mudanças de mentalidades.

Desde o ano passado, as redes sociais reproduzem casos de motoristas impedindo a passagem, ofendendo ou agredindo ciclistas, ao mesmo tempo em que vídeos denunciam a má qualidade do material empregado nas obras, ou ciclovias feitas apressadamente e contendo árvores e buracos no meio, ou traçadas sobre ladeiras intransponíveis. O embate entre os favoráveis e os contrários ficou ainda mais escancarado a partir do último dia 19 de março, quando a promotora de Habitação e Urbanismo do Ministério Público paulista, Camila Mansour Magalhães da Silveira, expediu uma ação suspendendo todas as obras de construção de ciclovias na cidade, com exceção daquela que está sendo construída na Avenida Paulista.

“Existe sim uma parcela preocupada com uma cidade com mais opções, com mais ofertas de deslocamento.                                              A bicicleta é só uma delas”

De acordo com a jurista, o problema das ciclovias seria a falta de planejamento e de consultas públicas no processo de implantação. Na ação, a promotora informou que o procedimento foi tocado com pressa, ou, nas palavras dela, em “ritmo acelerado”, o que justificaria as muitas reclamações que o Ministério Público vinha recebendo. Na letra da ação: “Paralelamente ao desenvolvimento exacerbado do sistema cicloviário neste Município nos últimos meses, esta Promotoria de Justiça especializada recebeu e continua recebendo um número considerável de reclamações de munícipes sobre irregularidades e problemas que têm agravado o já caótico sistema de mobilidade urbana da Cidade de São Paulo”. A autora da ação se refere ainda ao impedimento de circulação nas faixas em dias de chuva, às ladeiras de São Paulo e à queda no comércio local por eliminação de vagas. Por fim, a promotora lembra que, ao contrário de cidades como Nova Iorque ou Amsterdã, nos Estados Unidos e na Holanda, exemplos de cidades amigas das magrelas, o sistema de transporte público paulistano não prima pela qualidade. Assim, para a promotora, “a bicicleta não é um meio de transporte de massa, de modo que sua eficiência é questionável, pois sua capacidade é ínfima”.

Bastou a notícia sair na imprensa para os cicloativistas e os simpatizantes da causa reagirem. Rapidamente bicicletadas – manifestações sobre duas rodas – foram organizadas em várias cidades no Brasil e no mundo para defender as ciclovias paulistanas e marcar território contra o que chamavam de retrocesso no processo. A data escolhida foi 27 de março, uma sexta-feira. Um dos principais militantes das magrelas, o psicólogo Gabriel Di Pierro, diretor da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, a Ciclocidade, estava, claro, ao lado dos manifestantes que ocuparam a Praça do Ciclista, no finalzinho da Avenida Paulista, naquele fim de tarde.

E foi junto com outros 5 mil ciclistas, pedestres e apoiadores das faixas, na contagem dos organizadores, que Di Pierro recebeu a notícia animadora do capítulo seguinte nessa batalha pela mobilidade. Naquela mesma noite, enquanto os ciclistas se deslocavam pelas ruas das cidades onde havia bicicletada, o presidente do Tribunal de Justiça, Renato Nalini, tornava pública a decisão de derrubar a ação da promotora, por considerar que falta de estudo técnico e de consulta pública não eram argumentos suficientes para paralisar as obras.

“O fato é que a ciclovia mexe com algo já estabelecido. Aquela história do carro no centro do pensamento, porque é onde as pessoas querem estar, por conforto, pelo que representa economicamente”

“Parece que tivemos um pouco de sorte por a decisão ter parado nas mãos do Renato Nalini que, em outras situações já havia se mostrado favorável às ciclovias. O que parece é que talvez possamos ficar mais seguros que a política pública das ciclovias não deve parar”, comemora Di Pierro, em entrevista exclusiva à Giz. A alegria, o diretor da Ciclocidade garante, não é egoísta. A derrubada da liminar atende, segundo ele, aos anseios de parte significativa da população. Ele lembra que nem todos os manifestantes chegaram pedalando. Uma parcela veio a pé, com carrinho de bebê, segurando cachorros pela coleira. “Existe sim uma parcela preocupada com uma cidade com mais opções, com mais ofertas de deslocamento. A bicicleta é só uma delas”, defende. De fato, de acordo com o Instituto de pesquisa Datafolha, 66% dos paulistanos dizem sim ao projeto das ciclovias. E o Observatório de Turismo e Eventos, braço da São Paulo Turismo, aponta que 84% das pessoas se sentem mais estimuladas a dar uma chance à bicicleta agora que as ciclovias estão aí.

No entanto, os números frios que apontam a larga aprovação das faixas de bicicletas pela cidade não dão conta de retratar o sentimento de animosidade que essa política não raro suscita, na prática. E a pergunta que cabe aqui é: por que as reações mais extremadas nas redes sociais e nas ruas? “A violência em geral vem do motorista. Seja de ônibus, de carro ou de táxi. Primeiro, porque se entende que bicicleta não deveria usar a faixa de rolamento. Isso vem de gente que não conhece o código de trânsito, as leis, e acha que o ciclista está invadindo um espaço que não lhe pertence”, argumenta Di Pierro, “e, no momento que vem a política da ciclovia, as pessoas passam a achar que o ciclista está sendo mimado, protegido”. Ele teria se tornado o queridinho de um partido político não muito popular entre os paulistanos? “Sim, ciclista passou a ser visto como eleitor desse prefeito e são chamadas de petralhas nas ruas, existe uma animosidade crescente e pungente”, alerta o psicólogo.

Nesse sentido, para o ciclista, a argumentação que a promotora Camila Mansour Magalhães da Silveira utilizou acirra ainda mais os ânimos, porque “desqualifica a política. Uma coisa é você apontar os defeitos das ciclovias – e eles existem e devem ser sanados – outra é você colocar em cheque os critérios utilizados para a opção da prefeitura, o mérito mesmo”. Di Pierro se refere aqui ao levantamento de que a bicicleta não tem expressão econômica, enquanto a indústria automobilística é um dos esteios da economia brasileira. “Isso não qualifica a discussão. Ao contrário, impede um debate democrático”.

Em novembro do ano passado, o ex-diretor do Departamento de Transportes de Nova York, Jon Orcutt, falou numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que depois de construídos os 300 quilômetros de ciclovias naquela cidade, ainda foram necessários mais seis anos para que a população aceitasse e tomasse as faixas como parte da cidade. Esse é apenas um exemplo entre tantos outros de reações mais ou menos intensas contra as bicicletas e suas faixas exclusivas. No mundo inteiro há casos parecidos com o que acontece aqui em São Paulo. O diretor da Ciclocidade acredita que os paulistanos representam uma média do que já foi relatado mundo afora. De Paris a Buenos Aires, de Bogotá a Amsterdã, várias cidades se propuseram a tratar a bicicleta amigavelmente e enfrentaram resistências. “O fato é que a ciclovia mexe com algo já estabelecido. Aquela história do carro no centro do pensamento, porque é onde as pessoas querem estar, por conforto, pelo que representa economicamente”, levanta o psicólogo. “As pessoas vão ter que entender que vai ser preciso abrir espaço para a bicicleta se a política se solidificar”, e segue, “sim, o governo vai tirar estacionamentos, mas mesmo que não tirasse, não tem como incluir transporte público de massa e outros modais como bicicleta e dar conforto ao pedestre sem mexer com esse privilégio, com esse modelo que privilegiou historicamente o automóvel”. Ou seja, vai mudar bastante para a pessoa que usa automóvel, mas não significa que vai ser ruim, ou pior, para a cidade. E esse talvez seja o ponto de virada: pensar socialmente, coletivamente, em nome do bem da cidade. Pelo menos da cidade que os cicloativistas julgam mais humana e agradável.

“Os professores podem apresentar os argumentos contrários e favoráveis à política de ciclovias, sugerir que os alunos reflitam e se apoiem em exemplos de outras localidades. Isso reduz preconceitos e ajuda na sugestão de melhorias”

Para Di Pierro, não é que o usuário de automóvel vá ser obrigado a largar seu carro em casa. A ideia é, antes, proporcionar condições de transporte para que o motorista opte pelo transporte público, se assim o desejar. Ou, ao menos, que possa cogitar essa possibilidade. “A ciclofaixa de lazer, implantada na gestão anterior, de Gilberto Kassab, que a gente criticava como sendo uma medida só de lazer, hoje a gente vê que tem esse papel, de fazer a pessoa parar para pensar e, eventualmente, encarar”, lembra. Afinal, uma coisa é o discurso, outra é disputar espaço com automóveis e ônibus, com o corpo exposto e sem a força dos motores como aliada. Sentir isso tudo na pele, na opinião de Di Pierro, ajuda a compreender melhor o todo. “Se a gente quiser mesmo ter essa cidade com menos poluentes, com menos acidentes, mais sustentável, vai ter que mexer na estrutura. Carro é o modal que mais ocupa espaço viário, proporcionalmente ao número de pessoas que leva. É uma espécie de latifúndio e para mudar isso, tem que mexer em questões muito sérias”, coloca.

Este é o ponto em que a discussão se encontra. A pergunta que se deve fazer agora é: quais são os próximos passos? Os ciclistas e seus apoiadores querem continuar avançando, abrindo espaço. E estão pensando em dois caminhos: o primeiro é continuar ocupando as vias, se mostrando presentes. Quanto mais ciclista na rua, menos acidentes com ciclistas. Por extensão, garante Di Pierro, menos acidentes em geral, por conta da humanização do trânsito. E o segundo é pressionar a prefeitura. A jornalista e cicloativista Renata Falzoni vem defendendo que o poder público precisa fazer campanhas publicitárias, explicando e educando a população, em vários meios de comunicação. Da mesma forma, reduzir a velocidade das vias também é uma medida que melhoraria as condições do trânsito.

Por fim, o diretor da Ciclocidade sugere que as escolas, públicas e particulares, entrem na discussão. Começando pelas condições físicas: é possível chegar à escola de bicicleta? É seguro? Tem lugar para estacionar a magrela? O passo seguinte é dentro da sala de aula: “Os professores podem apresentar os argumentos contrários e favoráveis à política de ciclovias, sugerir que os alunos reflitam e se apoiem em exemplos de outras localidades. Isso reduz preconceitos e ajuda na sugestão de melhorias”, propõe Di Pierro.

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