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Cultura

Combate à violência no futebol

By 27/02/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O que fazer para conter a violência no futebol? A discussão não é nova, ao contrário, lá se vão décadas de debates acalorados, mas volta e meia o tema acaba sendo retomado, porque os estúpidos episódios envolvendo agressões e mortes de torcedores de vários times se repetem e só fazem acuar e assustar cada vez mais quem acompanha e participa desse universo. Mais recentemente, por iniciativa do Ministério Público de São Paulo, resgatou-se a tese que defende que os jogos clássicos só sejam abertos à torcida de uma das equipes – o mandante. A proposta sugere que, não se encontrando, a chance de rivais brigarem e vandalizarem os estádios diminua a quase zero. Pode não ser tão simples assim. O sociólogo Maurício Murad há anos pesquisa a violência no futebol e defende que a torcida única é apenas um caminho – para ele, não é o único, nem o melhor.

Murad, professor aposentado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e atualmente professor da pós-graduação da Universo, acredita que um plano nacional deve ser elaborado e colocado em prática para enfrentar, prevenir e mudar a cultura de violência nos estádios. A educação é, segundo o sociólogo, uma excelente via para enfrentar o problema. O especialista reconhece que, sozinha, essa formação educacional não resolve, mas reforça que não há saída para o impasse sem o apoio e o compromisso da educação. “A violência, propriamente dita, pode entrar nas aulas com o professor lembrando que ela é cometida principalmente por jovens. Esses alunos são jovens, há uma identificação aí. Depois, vale mostrar que a violência acaba com um dos nossos maiores patrimônios e é preciso que as pessoas não participem disso”.

A Revista Giz conversou com exclusividade com o professor Murad e os melhores momentos da entrevista o leitor acompanha ao lado. ►

 

Mais recentemente, desde a final da Copa São Paulo de Juniors, em 25 de janeiro último, a antiga discussão a respeito da violência no futebol foi retomada com força. Nas últimas semanas, esquentou mais ainda com a possibilidade de os estádios receberem apenas uma torcida pare evitar o confronto entre grupos rivais. Como o senhor avalia a situação da violência no futebol brasileiro hoje e, em especial, a violência das torcidas?

Infelizmente, nós regredimos muito. As torcidas organizadas no Brasil ganharam um tipo de organização de guerra, de confronto e conflito e de assassinatos nos últimos anos, que colocaram o Brasil no topo da violência do futebol, no que diz respeito a mortes comprovadas por conflitos entre torcidas. Esse é o tema da pesquisa que eu desenvolvo na Universo. Nos últimos três anos, 2012 a 2014, tivemos 71 mortes, um recorde mundial, o que dá uma média de 24 óbitos por ano, duas mortes por mês. Isso falando do que temos comprovado, fora o que ainda está em investigação e fora aquelas que não são registradas. É um recorde mundial, um infeliz tricampeonato. Na nossa pesquisa, a gente só contabiliza o que está comprovado. No ano passado ainda tem seis mortes em investigações, ou seja, o número pode crescer.

Mas o senhor disse que a gente regrediu. A violência piorou?

Piorou. Por quê? Porque o índice geral de violência no país cresceu. O tráfico de drogas e armas e o crime organizado também. Além disso, a relação de vândalos de torcidas organizadas com o tráfico de drogas e de armas está comprovado em vários locais, como São Paulo e Rio de Janeiro. E piorou muito porque as autoridades não cumprem sua parte, suas obrigações constitucionais, que são de aplicar a lei severamente, fazer cumprir o estatuto do torcedor, punir o crime organizado, cumprir o código do consumidor – porque antes de ser um torcedor, ele é um consumidor; e cumprir a Constituição também, porque antes ainda de ser um consumidor, é um cidadão. No artigo 144 da Constituição está escrito que o esporte é um direito do cidadão e a segurança, um dever do estado. A impunidade é muito grande, as autoridades não cumprem a parte delas. Depois daquela cena de barbárie em Joinville, entre torcedores do Vasco e Atlético Paranaense, houve uma reunião interministerial, porque o gabinete da Presidência disse que aquilo era inadmissível. Baixaram um monte de medidas de controle e somente uma, entre as nove, foi implementada. E mesmo assim parcialmente, porque os torcedores que foram presos estão todos soltos. A impunidade não está só na esfera do futebol, mas no âmbito geral, e faz o crime crescer, porque você passa a mensagem de que o crime compensa e nada vai acontecer. Tudo isso faz com que o futebol, esse patrimônio cultural brasileiro, fique entregue a uma minoria, mas perigosa, criminosa e que precisa ser contida.

Esse caminho de associação à violência – e ao crime organizado – que as torcidas brasileiras seguiram é parecido com o caminho que outras torcidas do mundo adotaram?

De certo modo sim, mas outras coisas não. A primeira coisa é deixar bem claro que não são todas as torcidas e nem a torcida toda. São pequenas parcelas de vândalos e delinquentes, dentro das torcidas. Pelas nossas pesquisas, são de 5 a 7% de quem faz parte das torcidas, uma média de 6% que tem associação com tráfico de drogas e armas. Isso faz com que o nível de violência no Brasil tenha crescido muito. Lá fora isso ocorreu também. A associação de vândalos com criminosos aconteceu na Itália, na Argentina e outros. A diferença é que houve uma reação do outro lado.

As autoridades se uniram a agiram para impedir o crescimento da violência e garantir o acesso da população dita comum ao esporte?

Exatamente. Por exemplo, na Inglaterra, a Margareth Tatcher, que era uma primeira-ministra extremamente conservadora, mas que nesse caso foi bem, reuniu um gabinete de guerra, dentro do Parlamento Britânico. E tratou a violência do torcedor como um assunto de Estado, muito mais que de governo, e lançou um grande plano nacional, que envolvia repressão, melhoria do espetáculo do futebol, de treinamento da polícia, combate à associação de vândalos e criminosos, de prisão, de endurecimento da lei e muitas ações de prevenção. Outra coisa importante foi a tentativa de mudar a cultura de agressividade desses coletivos, das multidões. Tudo isso conjugado, fez com que todo o problema de violência dos hooligans, que era o pior do mundo, fosse controlado pelas instituições. Hoje, embora não tenham resolvido tudo, a situação lá está muito controlada e não tem os índices de vandalismo e morte que se tem no Brasil. Aconteceu o mesmo na Itália, na Espanha e, em muito menor escala, na Argentina. Tenho defendido que o Brasil precisa de um plano estratégico nacional.

Como o senhor imagina esse Plano?

Com um conjunto de três medidas interligadas. Medidas de curto prazo, de repressão, aplicação dura da lei, prisão dos vândalos. Medidas de médio prazo, de caráter preventivo. E medidas de longo prazo, de caráter educativo para mudar a cultura de violência dessas torcidas organizadas, como fazer parcerias com os setores pacíficos das torcidas, que são a maioria. E outra medida que tenho defendido e que, parece, que o novo ministro dos Esportes está tendendo a acatar é o disque-denúncia das torcidas organizadas. É uma medida de caráter imediato, repressor, porque identifica o infrator, ao mesmo tempo é uma medida preventiva, porque evitaria o problema, e ainda uma medida de caráter reeducativo, porque aproximaria a maioria pacífica da autoridade policial.

Protegida pelo anonimato, a maioria pacífica denuncia e a polícia tem que prender.

E a Justiça dá seguimento ao processo. Temos experiências bem sucedidas de disque-denúncia, como o da violência contra a mulher, temos o do crime comum, contra a pedofilia, tem o da polícia rodoviária federal, contra a prostituição infantil. Por que não um para as torcidas organizadas?

É claro que a morte de pessoas é o mal maior a ser evitado, mas a gama de violências é muito mais ampla, tem outras manifestações. Até em termos simbólicos, a violência afasta o torcedor do estádio, entristece e envergonha o torcedor pacífico, faz o futebol se afastar do seu povo. É uma tremenda perda para o país, não?

Costumo dizer que quando falamos das mortes, estamos falando do ponto mais extremo. Mas até chegar à morte, você tem um conjunto enorme de vandalismos, transgressões, destruições, desrespeito ao patrimônio que é o futebol. Um local que é democrático, pertence a várias classes sociais e promove seu encontro. Mais de 70% das pessoas que pararam de ir ao campo, segundo nossas pesquisas, alega várias razões: preço dos ingressos, horário dos jogos, baixa qualidade das partidas, transporte coletivo. Mas a principal causa é a violência. A violência faz perder a cultura popular, a consistência simbólica que o futebol tem para o Brasil. E, esvaziado assim, fica só um pedaço e fica tudo nas mãos de poucos, da televisão. A regra não é o violento, então não podemos perder o combate para os vândalos. Combater duramente significa, portanto, cumprir as obrigações constitucionais e defender o patrimônio nacional.

Olhando para esse cenário todo, como a escola e o professor podem trazer essa discussão para a sala de aula? O futebol já é um universo riquíssimo para os professores trabalharem em todas as disciplinas, ele serve de gancho para muita coisa. Fico imaginando se a violência não pode, inclusive, matar esse manancial.

De fato, o futebol é um ótimo aliado. Os professores podem trabalhar língua portuguesa, com as crônicas do Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, matemática, física, história, tudo. Mas a violência, propriamente dita, pode entrar nas aulas com o professor lembrando que ela é cometida principalmente por jovens. Esses alunos são jovens, há uma identificação aí. Depois, como eu já disse, mostrar que a violência acaba com um dos nossos maiores patrimônios e é preciso que as pessoas não participem disso. Mais ainda, que participem do movimento pacífico. As torcidas organizadas no Brasil representam aproximadamente 2 milhões de pessoas. Já é uma minoria da população. Desses, menos de 6% está associado à violência. É uma minoria dentro do universo de torcedores. E a gente vai deixar na mão dessas pessoas?

Os jovens portanto são também fundamentais para ajudar a reverter esse cenário…

Ah sim, eles têm muito mais aproximação com esse mundo, conhecem outros garotos e garotas que estão envolvidos com as uniformizadas, podem ser sensibilizados a entrar nelas. Então o trabalho do professor é também mostrar que há um outro lado nas torcidas, que trabalha pela pacificação. E ainda tem as redes sociais, que eles operam com muito mais desenvoltura que qualquer adulto. Dessa forma, eles podem ser os primeiros a detectar os sinais de violência que se combina, ou propaga, pela rede. Pode se afastar dela, se associar aos grupos pacificadores.

Há ainda a ponta dos clubes, que, de alguma maneira, patrocinam as torcidas. Como o senhor vê isso?

De novo, estamos falando de um envolvimento político. Se o jovem é associado a algum clube, tem que brigar lá dentro para que os diretores não financiem os vândalos. A ideia deve ser sempre isolar, parar de alimentar, os grupos de vândalos. Não bancar, não pagar viagens, nada. Isso é uma tática da segurança pública, isolar os grupos violentos. Dentro dos clubes, isso pode ser disputado e os associados têm de cobrar isso. É um embate político. O mais importante é fazer o jovem entender que o futebol é uma propriedade dos brasileiros e não dos clubes, das TVs, das torcidas.

Virou um patrimônio brasileiro, não é? Porque não nasceu aqui.

Exatamente. E o mais bonito é que era um esporte elitista, racista, machista e que o povo brasileiro assimilou, transformou e agarrou para si. Hoje é evento democrático e popular, um dos que mais mobiliza a população brasileira. Essa também é uma das grandes importâncias do futebol. Por isso é que temos de ser convocados a brigar contra tudo que vai contra esse espírito lúdico, de jogo, que é o futebol. Já fizemos coisas muito mais difícil, que foi popularizar o esporte da elite branca. Os professores podem trabalhar bem isso. Sempre digo que é aí que os professores entram, nesse trabalho de reeducar pedagogicamente para a cultura do futebol. É um projeto longo e a educação não pode fazer nada sozinha, mas não conseguimos fazer nada sem a educação.

Vamos falar um pouco mais de práticas pedagógicas. Além das discussões sobre o assunto, como mais os professores podem trazer a questão da violência do futebol para as aulas?

É muito importante a gente trabalhar esse tema, porque, através da violência no futebol, a gente pode entender e intervir e impedir a violência no geral no Brasil. A política que não funciona, os excessos, as políticas públicas que não funcionam. Dentro da sala de aula, cabe bem lembrar que a violência é uma forma de covardia, de imposição sobre os valores do outro. No futebol, o adversário é confundido com o inimigo, a competição é confundida com agressão, e a concorrência com violência. E isso, atenção, é antiético. Numa sociedade democrática e de direito, como está consagrado na nossa constituição, garantir o direito de decisão e escolha do outro, aceitar – mesmo sem concordar – com o direito democrático do outro, é aceitar que a convivência pode ser pacifica e generosa com o outro.

E o professor pode trabalhar talvez com pequenos estudos de caso, com situações problema?

Estudos de caso, problemas e técnicas de dinâmica de grupo. Tem uma que é muito válida, que é o painel duplo. O professor divide a turma em dois grupos e tenta radicalizar as opiniões. Um grupo busca argumentos para o sim, o outro, para o não. Em determinado momento, e isso já era acertado com a turma, os grupos mudam. Quem defendia a posição A, passa a defender B e o contrário também.

Isso faz o aluno, mesmo depois de radicalizar, se colocar no lugar do outro, ver o mundo por outro ponto de vista.

Exatamente, leva a pensar por outra perspectiva, com os valores do outro. É um bom exercício de cidadania. Aí os grupos resumem tudo e apresentam os painéis.

O senhor também usava a técnica de simular um julgamento, não?

Exatamente. Um júri simulado. O professor pega um caso e simula um júri, com advogado de defesa, promotoria, jurados e juiz. Todos param, pensam e avaliam aquele caso. É uma forma de conhecer, de se aprofundar e de se posicionar.

É como se fosse a parte pelo todo. A experiência do futebol e de suas torcidas pode ensinar a viver em sociedade.

Exatamente isso. Conviver, tolerar, respeitar as escolhas do outro, ainda que eu não concorde, tem um nome bonito que é: civilização. A sala de aula e a escola, então, devem ser um laboratório para exercitar valores que serão retomados e trabalhados ao longo da vida inteira, na sociedade. Valores democráticos e de cidadania. É importante então reconhecer que a violência é objeto de uma cultura machista, de exclusão, de intolerância, que infelizmente estão dominando a vida social e cultural. E não só no Brasil. Como o futebol é paixão, a mais forte paixão popular do Brasil, através dele podemos discutir questões que vão muito além dele e que são de interesse da sociedade, de cidadania e democracia. Porque o que não é aceitável no futebol, também não é na sociedade.

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