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Cultura

Felicidade, um produto à venda?

By 20/03/2013No Comments

Pesquisa analisa como esse sentimento vem sendo tratado (e buscado) na sociedade de consumo

Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

O psicólogo Luciano Espósito Sewaybricker entrou no mestrado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP) em 2010 com um desafio intrigante: queria saber, afinal, o que era essa tal felicidade, tão apregoada em anúncios, vagas de emprego e propostas pedagógicas. Para mergulhar no tema, buscou a orientação do professor Sigmar Malvezzi e defendeu no ano passado a dissertação A felicidade na sociedade contemporânea: contraste entre diferentes perspectivas filosóficas e a Modernidade Líquida.

Entre outros questionamentos, Sewaybricker levanta como a felicidade foi trabalhada por oito filósofos de várias épocas diferentes, de Platão a Immanuel Kant, passando por Santo Agostinho e Epicuro. Localiza em seguida dois grandes “grupos de felicidades” – algumas possíveis e outras não, nos tempos de hoje. Apoia-se em Zygmunt Bauman para compreender a felicidade na modernidade líquida – tempo em que vivemos hoje – e, lá no fim, ainda se pergunta: “aquela indefinição bonita, que resgata a busca pela natureza do homem, da vida, do sentido das coisas, onde foi parar? E por que não encontra mais espaço na sociedade de consumo em que vivemos?”

Você acompanha a seguir os melhores trechos da entrevista exclusiva que a Revista Giz fez com Sewaybricker.

Revista GIZ – Como foi seu processo de reflexão, o desenvolvimento da pesquisa que resultou em sua dissertação de mestrado?

Prof. Luciano Espósito Sewaybricker – Comecei a prestar atenção na questão da felicidade quando ainda era estudante de Psicologia, trabalhava como estagiário numa multinacional e cuidava especificamente do programa de qualidade de vida dessa empresa. O mote lá era promover a felicidade entre os funcionários e então tive contato com a bibliografia sobre esse tema. Nas empresas existe uma crença de que colaboradores felizes trabalham melhor, adoecem menos, produzem mais e ficam mais tempo trabalhando ali. Trata-se de uma crença, não há nenhuma pesquisa que comprove isso. E programas de qualidade de vida, incentivo aos funcionários são um diferencial na hora de seduzir o trabalhador a ser contratado, os candidatos perguntam. Bem, em contato com tudo isso, lendo bastante, não encontrava uma explicação sólida sobre aquilo eu de fato estava promovendo ali. O que era aquela felicidade? Foi quando comecei a ler os filósofos. Um deles me chamou muita atenção, um francês chamado André Comte-Sponville, que fala bastante sobre felicidade e chega a dizer que ele é um dos poucos filósofos da atualidade que tratam a questão como um tema filosófico e não psicológico, ou neurocientífico, ou até de auto-ajuda. Para ele, trata-se de filosofia mesmo. E Sponville parte da seguinte questão: se estamos em busca da felicidade, deve ser porque então não somos felizes. Achei isso muito provocador e a partir daí meu projeto de mestrado começou a ganhar corpo.

Você continuou lendo outros filósofos? Como a Filosofia ajuda a olhar para a felicidade, porque estamos mais acostumados a ler sobre ser feliz, ou tentar ser feliz, em outras áreas do conhecimento.

De fato, a auto-ajuda, por exemplo, não se arrisca muito a explicar o que é a tal felicidade, mas se propõe a revelar caminhos para chegar lá, ainda que bem genéricos. Psicologia e Neurociência, eu colocaria no mesmo pacote, que é a felicidade para a ciência. E, em cada área da ciência, foi-se estudar felicidade a partir dos olhares bem específicos, com marcadores bioquímicos, liberação de substâncias, sintomas corporais, etc… O meu estudo, gosto de dizer, é bem circunscrito. Estudei o que a Filosofia, filósofos ou grandes sábios da humanidade, de várias épocas diferentes, falam sobre a felicidade. Diante da afirmação do Conte-Sponville de que não somos felizes, primeiro fui à Filosofia buscar o que é felicidade para esse campo do saber.

E o que é?

Bem, aí peguei Platão, Aristóteles, Zenão di Cítia, Epicuro, Santo Agostinho, Kant, Jeremy Bentham e Freud. Estudei os conceitos de felicidade de cada um deles e trabalhei bastante com eles. E concluí que são oito felicidades distintas, com algumas aproximações, mas certamente os filósofos não estão falando da mesma coisa. O que dá para fazer é aproximar essas definições em dois grandes grupos mais gerais: o da felicidade normativa e o da felicidade menos normativa.

Normativa no sentido de ter uma regra para se alcançar um processo?

Exatamente. Os filósofos que partem para essa concepção são aqueles que defendem que há uma Verdade no mundo e que ela pode ser descoberta e apreendida pelo homem e então vão propor um caminho certo de se viver, a melhor forma de se viver. E seu eu tiver de dizer o que é felicidade, é isso: a melhor forma de se viver. Todos os filósofos esbarram nisso de alguma maneira. E existem os outros que vão falar sobre a felicidade não normativa, que deixam algum aspecto em aberto. Ou do homem, ou do mundo, ou dos dois. O Aristóteles é o mais emblemático deste grupo. O mais importante para ele são as relações sociais, é através dela que o homem político vai se construir, se desenvolver e se tornar o mais próximo de deus, que é algo importante para ele. Mas o grego vai entender que o homem nunca vai se tornar deus e, nessa construção coletiva, social, vão aparecer coisas importantes, contextuais, que vão mudando de momento em momento, dependendo das relações de momento. O resultado é que você não tem um mapa claro de como fazer para ser feliz, da melhor forma de se viver. O caminho fica em aberto.

Você caminhou então para o segundo momento, que foi entender essas felicidades no mundo de hoje, na sociedade atual, é isso? E o que encontrou?

Isso. Eu poderia avaliar a nossa sociedade por vários aspectos e pontos de vistas. Escolhi o filósofo Zygmunt Bauman, que escreve muito sobre a modernidade líquida, que é esse momento que estamos vivendo. Bauman é um tanto pessimista. Ele classifica nosso tempo como uma continuação da modernidade, porque muitos dos valores (projeto, progredir, subir degraus para alcançar, lutar para conseguir, etc) ainda não foram superados. Não é, portanto, pós-modernidade. E veja que modernidade tem muito a ver com as tais normativas. No entanto, as relações entre as coisas e as pessoas estão mais fluidas, mais flexíveis. Parte dessa liquidez se deve à tecnologia, que mostrou ao homem que aquele fim almejado pelos modernos não existe e nunca chegará. E a tecnologia também acelerou um pouco as coisas e assim tornou vínculos mais frágeis. Então vivemos sob mudanças contínuas, nada tem valor absoluto.

“Se estamos em busca da felicidade, deve ser porque então não somos felizes”. Achei isso muito provocador e a partir daí meu projeto de mestrado começou a ganhar corpo.

O que leva ao pensamento de curto prazo e elos fracos. Daí o termo modernidade líquida. E dentro disso tudo, vivemos no que Bauman chama de Sociedade do Consumo, que é aquela que se preocupa muito mais em produzir demandas, desejos, em vez de produzir produtos. Então isso tudo conversa muito bem. Modernidade líquida, gratificações instantâneas, porque faltam ideais de longo prazo, consumo e resgate das felicidades normativas.

O que o senhor defende é que a felicidade normativa, ou a busca por ela, combina mais com nossa sociedade atual?

Sim, porque essa maneira de encarar a felicidade, ou o melhor modo de viver, pode ser ditado por outros e consumido por você. Na mão contrária, a não-normatividade diria que não é uma propaganda, de produto ou de ideia, que vai conseguir dizer o que vai fazer você feliz, parafraseando o supermercado Pão de Açúcar, por exemplo. Chamo a atenção para como esse segundo discurso, mais ligado à busca que à imposição de meios, não tem espaço na Sociedade de Consumo. Não combina, não provoca eco.

Enquanto o senhor falava, me lembrei de uma psicoterapeuta que dizia que a tradicional família de classe média hoje busca tutoriais para ser feliz e viver bem. Então os filhos têm de ir para a escola particular, fazer terapia, usar aparelho, ir à fonoaudióloga e, se nada mais der certo, tomar ritalina para combater a hiperatividade. E nas famílias também: se contratam empresas de organização, de decoração, de limpeza, de consultoria para gerenciar o tempo, o orçamento, enfim… tudo pode ser tutelado. E essa é a melhor maneira de enfrentar os problema e isso pode ser vendido como produto. É isso?

Faz todo o sentido. É isso mesmo. Pesquisas mostram o quanto as pessoas ao nosso redor influenciam nossas escolhas e decisões. O problema social que vivemos é que em detrimento de lidar diretamente com o problema ou com os impedimentos, as pessoas têm feito escolhas para evitar os problemas e chegar logo à felicidade. Isso fica muito claro na educação de crianças que têm muita energia, ou de adolescentes que não conseguem se desconectar das tecnologias, ou ainda de adultos que sofrem por algum motivo e tomam anti-depressivos para não lidar com aquela dor, ou mesmo não senti-la. Essa é minha visão também. Mas um dos filósofos que estudei, o inglês iluminista Jeremy Bentham, pretendia transformar a sociedade numa fábrica de felicidade. E para Bentham, felicidade é prazer. Ele então destrincha todas as formas de ter prazer e conclui que o importante é que a somatória do que dá prazer seja maior do que a somatória do que causa desconforto. Não importa em que proporção. Se você é mais feliz que infeliz, já valeu, a sociedade já alcançou o que devia. E ele sugere isso para as sociedades também. Ou seja, a somatória de pessoas felizes tem de ser maior que a de pessoas infelizes. Se se conseguir isso, está feito. Muito preocupado em transformar a felicidade em um cálculo concreto, ele estava pouco interessado no bem-estar pessoal.

Muito bem, aí o senhor passou todos esses conceitos pelo filtro do Bauman. E conseguiu finalmente encontrar o que é a felicidade hoje?

Essa é uma resposta que não consegui encontrar claramente. São oito felicidades distintas, umas possíveis, outras não. Mas acho que o mais interessante a que cheguei, já ali nas conclusões, é que felicidade é um conceito polissêmico e pode ser interpretado de várias formas. Pensando nisso, porque a gente escolhe um tipo de felicidade, ou outro, para aferir se a gente está feliz ou não, quando isso nos é perguntado. Ou seja, sei responder a essa pergunta me baseando em modelos do que é ou não felicidade para mim. E esses modelos certamente têm amparo na sociedade e no tempo em que eu vivo. Tem um sociólogo francês chamado Michel Callon que trata da chamada performatividade das teorias, ou de como as teorias são aceitas ou não na sociedade, num determinado tempo. Então veja, se uma teoria prega uma felicidade cor de rosa, num mundo altruísta, em que tudo está bem e, no entorno, a vida é violenta e as pessoas se matam, essa teoria se transforma numa grande bobagem.

Uma alternativa a isso, acho que os professores podem aproveitar bem, é trabalhar a educação como busca e ao buscar conhecimento e sabedoria, experimentarmos prazer e felicidade.

Então, nesse sentido, a felicidade do Bentham, ou as mais normativas, ganham mais espaço na nossa sociedade atual. Essas teorias mais do passo a passo, do mapa do caminho, reverberam mais nessas pessoas. Uma felicidade baseada em vínculos fortes e duradouros, em tempo de relações fluidas, não faz sentido. E mais uma coisa que o Callon diz: cada vez que eu escolho um modelo de felicidade para me guiar, eu reforço esse modelo, ajudo a disseminar, endosso a opção e influencio quem está por perto.

Se a gente percebe que as formas mais simples de felicidade, essas mais normativas, fazem mais sucesso, digamos assim, que as mais complexas, não-normativas e, se ao mesmo tempo, a gente tem como plano da sociedade de consumo disseminar uma felicidade que seja possível de produzir na maior escala possível (para ser vendida e consumida), e a gente reforça isso o tempo todo, o que se pode esperar desse nosso tempo?

Essa é a questão crucial. Aquela frase do filósofo francês Conte-Sponvill “tanto menos se tem felicidade quanto mais dela se fala”, na verdade não é que a gente tem menos felicidade hoje. A questão é que a qualidade da felicidade será menor, quanto mais a gente quiser ter felicidade. Como a diferença entre manufaturados e industrializados, ou comida caseira versus fastfood. Então a qualidade da felicidade está baixando.

É como se a gente estivesse aceitando uma felicidade mais banal, ou como se a gente não estivesse conseguindo almejar uma felicidade de maior qualidade. A gente perdeu essa capacidade?

Eu acredito que é uma dificuldade de pensar nessa felicidade mais complexa. O Bauman fala muito sobre isso. As coisas acontecem rápido e longe, de forma que a gente não sabe mais o que influencia e a gente deixa de acompanhar o todo. Daí os desejos ficam restritos. E vira um misto de eu não consigo e eu não quero acompanhar coisas em longo prazo. Então a pessoa se restringe e as fronteiras, assim, se encurtam, os horizontes ficam menos amplos.

Mas aí a gente fica menos humano do que poderia… Admitindo que o ser humano é uma espécie que sonha, que almeja…

Essa não é uma concepção geral de ser humano. Eu penso assim, concordo com você, sou mais aristotélico, menos normativo. Mas essa visão não é a única possível. Ser menos normativo toca no grande barato que é ficar imaginando, filosofando, sobre o que é o homem, o que é a felicidade e qual o sentido de tudo isso. Uma das maiores riquezas da humanidade é a indefinição, é a gente poder ficar pensando e resgatando essa natureza ontológica. E de repente isso não está mais acontecendo, fazendo sentido. E não faz mais parte do arsenal do tema da felicidade. A ciência acaba podando esse aspecto bonito do tema da felicidade para suprir uma demanda da nossa era, da nossa contemporaneidade. Uma alternativa a isso, acho que os professores podem aproveitar bem, é trabalhar a educação como busca e ao buscar conhecimento e sabedoria, experimentarmos prazer e felicidade. Mas isso também se contrapõe um pouco à normatividade que prevê que a escola seja um local onde se ensinam ferramentas para realizar tarefas, em nome de um objetivo. Se a educação for encarada de outro jeito, pode dar um resultado interessante e pode resgatar essas indagações tão humanas e seminais que já tocamos antes.

 

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