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Cultura

O ponto de intersecção

Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

          Livro conta como a rima uniu dois universos e ajudou a resgatar identidades

“O maior medo do ser humano não é morrer, é morrer e não sobrar nada dele para contar a história”. Foi assim que, em maio de 2005, o músico Luis Tatit, também professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), começou a explicar as razões pelos quais o som, a palavra e a canção eram importantes para a humanidade. Dizia Tatit naquela entrevista, feita para uma dissertação de mestrado, que o homem tinha tanta vontade de vencer o tempo e de se projetar no futuro que encontrou uma maneira de colar o imaterial (a memória e os conhecimentos) num suporte mais palpável e disponível – o som. E que, desde épocas ancestrais da existência humana, o som teria se prestado então a essa tarefa de preservar as histórias, se amalgamando a elas e mantendo-as a salvo da ação do tempo. O músico explicou ainda que, de todas as características do som, nenhuma era mais forte nesse ofício de guardar valores, causos, lembranças e ensinamentos que o som ritmado, organizando metricamente, em rimas.

Caminhando da teoria à prática, uma pesquisa realizada entre 2007 e 2009 e lançada recentemente em livro pela psicanalista Maíra Soares Ferreira mostra exatamente a força que a rima tem e pode ter. Em A rima na escola, o verso na história, da editora Boitempo, a pesquisadora da Faculdade de Educação (FE) da USP relata o trabalho que desenvolveu com adolescentes de uma escola da Zona Sul da capital paulista. Ela fazia parte de uma equipe de pesquisa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que estudava cultura juvenil versus cultura escolar, com o intuito de propor melhorias para o ensino público. Começou observando que os estudantes daquela escola, nos recreios e aulas livres, se juntavam para cantar rap. Notou que era uma cultura bem sólida ali e começou a trabalhar cordel, rap e repente com eles. O material que resultou desse envolvimento com os jovens deu origem à dissertação de mestrado de Maíra, defendida em 2010, sob orientação da professora Monica do Amaral. E a dissertação, que ganhou o prêmio Patativa do Assaré naquele mesmo ano, foi transformada em livro, distribuído pelo Brasil todo.

A grande sacada da psicanalista – que possibilitou produzir um Mestrado e um livro – se deu quando, à medida que trabalhava com os meninos e meninas de 13 e 14 anos, então no 8º ano do ensino fundamental, sacou que o rap, a rima e o ritmo eram os objetos perfeitos a serem investigados, porque eram elementos fortemente representativos da realidade daqueles adolescentes. “Meu pressuposto vem de Paulo Freire, somente trabalhando com dados da realidade dos estudantes é possível estabelecer uma relação verdadeira de ensino-aprendizagem”, explica. Durante esse período, Maíra também teve acesso a um levantamento feito pela ONG Casulo, que atua no Real Parque, mostrando que a maioria das famílias daquele bairro paulistano veio do Nordeste, em especial de Pernambuco, na década de 1950, para construir o estádio do Morumbi, o Cícero Pompeu de Toledo, pertencente ao São Paulo Futebol Clube. E junto com os migrantes nordestinos chegaram também indígenas da tribo Pankararu, situada aqui no estado de São Paulo. Muito atenta às falas cantadas nos raps dos recreios, a psicanalista notou que as canções jamais falavam sobre essa origem, sobre o passado, sobre sagas familiares e sobre as raízes desses adolescentes. “Eu sou psicanalista e a negação – ainda mais uma negação assim presente – também diz muita coisa. E, ao investigar essa faceta, descobri que os meninos se sentiam tão excluídos de qualquer coisa que não enxergavam nesse histórico algo deles, algo que lhes dava pertencimento”, conta.

Maíra lembra que vários adolescentes entrevistados diziam que nordestino, ou índio, eram o pai, ou o avô dele. Ele mesmo não. “Se apresentavam como um ‘favelado qualquer, que vai virar aviãozinho do tráfico de droga’. Isso é algo muito forte”. Mas aí veio o pulo do gato. Ao confrontar discurso com prática, a pesquisadora reparou uma brecha bastante significativa. “Embora negassem o passado textualmente, brincavam de rap, de rima, resgatando as brincadeiras da forte tradição oral dos nordestinos e dos índios. Então se o discurso repulsava, a prática reforçava, repetia a tradição”, revela. E, assim, paulatinamente, trabalhando a força da rima, da métrica, do ritmo, apresentando o cordel e o repente como outras expressões desse mesmo jogo, Maíra conseguiu aproximar – ainda que pontualmente – a cultura que o jovem vivia da cultura escolar.

Perguntada sobre se essa aproximação acabou provocando alguma diferença no desempenho dos alunos pesquisados, a autora de A rima na escola, o verso na história explicou que não era esse o objetivo do estudo. A maior conquista, segundo ela, e essa sim uma das metas da pesquisa, era proporcionar um trabalho no qual o aluno pudesse tomar posse do seu lugar de pertencimento (na história familiar, na relação com a comunidade e com a escola), através das brincadeiras de rimar, fosse em forma de rap, ou de repente. “E isso os alunos alcançaram sim, está bem contado no livro. Em certo momento, eles começaram a achar muito estranho e errado se denominar ‘favelado’ e cunharam uma nova expressão que dava conta dessa identidade resgatada e construída: ‘afro-indígena-sertanejo-nordestino-paulistano’”, comemora a psicanalista. Um nome comprido assim representa a conquista de um lugar de pertencimento, que reconhece o passado e se projeta no futuro. Ainda de acordo com Maíra, esse deslocamento é, por sorte, um caminho sem volta. “Tomar posse de você mesmo é um avanço tremendo, esses meninos perceberam que podiam sair do lugar de exclusão – que eles reforçavam sem nem parar para pensar – e propor outra posição social para eles mesmos”.

Quando inscreveu sua dissertação no prêmio Patativa do Assaré, do Ministério da Cultura, o intuito da pesquisadora era divulgar a sua experiência e, mais, contar aos outros profissionais que trabalham com jovens e com educação que não há uma receita única, pronta, para de fato ensinar e, com isso, proporcionar crescimento e autonomia aos estudantes. Os caminhos que desaguam nesse resultado podem ser muitos e variados, mas todos passam pelo que a autora chamou de entrega. “O professor precisa ter uma vontade imensa e inesgotável de conhecer o outro, de ter um encontro verdadeiro com o outro e, para isso, precisa se despir”, provoca. E, junto com isso, poder lidar com os incômodos, os desconfortos, as dores que esse contato vai revelar. Na escola, trabalhando com os meninos e meninas de 13 e 14 anos, Maíra ouvia frequentemente que eles estavam em situação de exclusão. “Você ouvir desse aluno que ele é só um favelado, dói. E diz respeito a mim”, conta. Escutou algumas vezes também que ela era apenas uma burguesinha branca, que ia lá fazer mais um trabalho e depois iria embora, ganhar alguma coisa com isso. A pesquisadora coloca que nessas situações precisou concordar com os jovens “É verdade, eu era mesmo tudo aquilo, mas perguntava sempre a eles se não era possível desse embate entre favelados e psicanalista burguesa sair algo proveitoso para todo mundo, que todo mundo crescesse”.

Acontece que estar disposto a esse encontro permeado por conflitos e trabalhar com esses fatores todos de estranhamento que aparecem não é fácil. De um modo geral, educadores não são formados para situações como essa. “Inclusive, esse entendimento não passa pelo sistema de formação do professor, não há disciplinas que ensinem isso na graduação e na pós-graduação. Nessas situações, o que existe de fato é uma entrega, que mobiliza todo o resto. E que, quando a gente vai a campo, dá resultado”, completa Maíra.

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